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Duomo

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Eu fui criado numa casa eternamente em reformas, tanto que adquiri o hábito da minha mãe, em se referindo ao nosso lar, de nunca permitir que algumas paredes derrubadas, umas semanas poeirentas e quilômetros percorridos em busca de materiais fossem empecilhos para termos uma casa do jeito que queremos.

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Uma piada feita por Irmão Carmelo, religioso muito amigo de mamãe, definiu bem a nossa casa: “parece a catedral de Milão. Sempre em reforma!”

A dita catedral é o famoso Duomo de Milão. Originalmente onde hoje se encontra a maior catedral da Itália (a Basílica de São Pedro fica na Cidade do Vaticano, que não é parte da República Italiana), originalmente existiam duas outras igrejas, a antiga catedral de Santa Maria Maior e a basílica de Santa Tecla que formavam o complexo episcopal. Ali, antes da construção da basílica já existia um templo romano dedicado a Minerva, e antes deste um outro dedicado à deusa celta Belisama.

Depois de o campanário desabar em 1386, o arcebispo Antonio de’ Saluzzi, apoiado pela população, promete, em 12 de maio de 1386, a reconstrução de uma catedral nova e maior que seria erigida no local religioso mais antigo da cidade (A basílica de Santa Tecla, um templo protocristão, foi edificada ainda no fim do período romano no qual a cidade de “Mediolanum” (a atual Milão) era capital do Império Romano do Ocidente, posto que manteve até o ano 402 d.C.).

De 1387, quando foram iniciadas as fundações dos pilares até 1805 quando a fachada foi finalizada durante o período napoleônico, se passaram mais de quatro séculos e mais de 40 engenheiros e arquitetos que trabalharam para que a catedral fosse erguida. Mas ainda durante todo o século XIX, até 1892, foram feitos trabalhos de construção das famosas agulhas da igreja e já eram iniciados restauros das partes mais antigas.

Os últimos trabalhos de restauração foram terminas em 1986 em comemoração aos 600 anos desde o início da construção. Mas até hoje a manutenção da catedral é de responsabilidade da “Veneranda Fabbrica del Duomo di Milano”, e as intervenções são contínuas, tanto que fez-se nascer a expressão milanesa “Longh come la fabbrica del Domm”, para se referir a qualquer coisa interminável.

Hoje entendo que o que Carmelo dizia era mais que uma referência à nossa casa, mas a todos nós. Uma catedral jamais é construída em um ano. Poucas foram as que levaram menos de um século para serem terminadas. Muitas, inclusive, mantêm-se inacabadas até hoje, sendo seus projetos originais desconhecidos da maioria da população que as vê como são há tantas gerações que já se esqueceram que aquilo que foi feito de pedra e argamassa não é o que orginalmente estava em papel e tinta.

Assim também somos nós. Seja durante a nossa construção, seja as inúmeras “reformas” que passamos durante a vida. Pergunte a qualquer pai ou mãe e eles lhe dirão que criar um filho é uma surpresa diária. Do nada uma gripe e febre, no outro dia já está correndo e a noite mal dormida parece que nunca aconteceu. Hoje come apenas bananas, amanhã não quer mais comer nenhuma e as duas pencas que você comprou na esperança de seu filho comer alguma coisa vão se estragar na fruteira.

Depois, mais velhos, descobrimos que o curso que resolvemos fazer na faculdade não é para nós, ou o emprego que outrora fora dos sonhos hoje lhe dá desgosto. Quantos outros não já ouviram juras de amor de pessoas que nem se sabe o paradeiro? A construção de nós mesmos ainda que com o projeto mais perfeito precisa lidar com percalços do caminho. Pedras grandes demais para serem removidas do terreno, uma árvore enxerida que brota no meio do terreno e você tem que abrir mão de um quarto para não precisar se livrar daquela árvore inesperada que lhe presentou com flores. E assim seguimos a construção.

Uma hora seu telhado está no lugar, portas e janelas no lugar, paredes pintadas e quadros pendurados. Mas um dia você decide que vai se tornar vegetariano. E agora o que fazer com a churrasqueira? Derrubo tudo e transformo em horta? Deixo ali para os dias de festa? E aquele presente horroroso que você guardou por anos só porque foi presente da sua sogra? Qual o prazo aceitável pra passar ele em frente?

Mas um segredo que qualquer pessoa que já reformou uma casa ou teve que fazer uma restauração já sabe: dá menos trabalho começar do zero.

Outro dia surgiu a conversa de nos mudarmos, eu simplesmente colapsei chorando no chão do banheiro. Eu abria os olhos e via as cortinas que eu levei uma semana fazendo, os quadros que eu garimpei, outros que fiz… e os livros? Honestamente, eu prefiro vender a casa com tudo dentro e ir embora do que ter que empacotar quinhentos livros e outros tantos copos e pratos. Raramente tudo que temos cabe no novo lugar. Eu tenho tontura só de imaginar o trabalho que daria me desfazer de metade dos móveis… E as lembranças? As árvores? Como fazer?

Ainda que por anos eu tenha feito uma cuidadosa curadoria de móveis, objetos de decoração, amigos e pessoas na minha vida, às vezes nos vemos ante uma realidade que nos impele a mudar, sejamos forçados por uma força externa ou por uma decisão própria.

E lá vamos nós selecionar quais memórias queremos manter conosco, quais são melhor esquecidas e nunca mais mencionadas.

Costumo dizer que você sabe as coisas importantes durante um incêndio. Você vê sua casa pegando fogo e imediatamente você sabe o que tem que salvar antes que as chamas tomem de conta. Na vida como um todo também é assim. Na hora “h” você sabe muito bem quais são as suas prioridades.

Contudo, outros de nós, temos a chance, ou fazemos essa escolha dura durante as horas importantes, de “reformarmos” ao invés de nos mudar. Às vezes você não acha uma casa que melhor lhe acolha, ou o carro novo está fora do seu orçamento, ou você simplesmente está feliz com tudo que tem. Mas para citar outra obra italiana: O Leopardo, nela é dita uma frase que é fundamental em muitos momentos de nossas vidas, “para que tudo continue como está, tudo precisa mudar”. Para que aquele lugar continue sendo sagrado, Belisama deu Lugar a Minerva, Minerva a Santa Tecla, esta a Maria. Para que o Duomo, mesmo depois de quase meio milênio de construção, continue sendo o que é, a manutenção é diária.

Seja na construção, na reforma, na mudança ou na simples manutenção, a única certeza da vida é a constante necessidade de movimento, tomada de decisões e a confiança de que depois de tantas marteladas, poeiras e projetos, a obra finalizada será, talvez não perfeita, mas definitivamente adequada ao seu propósito e um reflexo de seus processos.

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