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Creontes

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Não sei se o algoritmo que me circunda é o das redes sociais e da tecnologia ou o cósmico, mas em diversos momentos de minha vida alguns temas tornam-se incomodamente repetitivos, como um espinho que não deixa de chatear até que seja retirado.

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Outrora passei por isso quando escolhia alguma nova língua estrangeira para estudar (alemão e russo continuam me perseguindo, mas isso é um problema para o futuro), outras vezes são temas que pareço plasmar ao meu redor. Ainda antes de saber o tema do meu trabalho de conclusão de curso, questões de direitos humanos me “perseguiam”.

Estudei arduamente sobre os crimes contra a humanidade cometidos nos territórios ocupados pelo terceiro reich, e até hoje me deparo com materiais que remetem ao tema.

Já me vi num sebo comprando uma pilha de livros sobre o nazismo e o holocausto e me justificando para vendedora: “moça, eu não sou nazista não, só estudo o tema”.

Ultimamente, contudo, venho buscando temas mais “leves” para me distrair em meu tempo livre, mas parece que a tragédia humana me persegue.

Desde que me deparei com uma questão de português do Concurso de Admissão à Carreira Diplomática que se referia a um “Trabalho de Sísifo” e eu não sabia de que se tratava, vi que minha ignorância sobre a cultura clássica era inaceitável. Desde então, num misto de dever e diversão, me dedico a cultivar um pouco desse conhecimento tão fundamental para a cultura do ocidente.

Inicialmente, através dos trabalhos de Homero e suas histórias de como Zeus “gestou” Atena em sua perna e como esta nasceu a partir de uma dor de cabeça de seu pai curada com uma machadada de Efesto que lhe abriu o crânio e permitiu que a deusa saísse para o mundo vestida e armada com capacete, lança e escudo; de como em outro momento Atena, Afrodite e Hera disputaram o prêmio de “a mais bela” durante o casamento de Peleu e Tétis… e findando em discussões mais humanas como as tratadas em “Antígona”, peça de Sófocles, que há dois mil e quinhentos anos vem se mantendo atual ante a vaidade dos líderes humanos que julgam serem suas leis superiores àquelas da humanidade e dos deuses.

Resumidamente, a obra trata da luta (e das consequências) de Antígona para enterrar o seu irmão Polinices, tido como traidor por Creonte, seu tio, rei de Tebas. O debate central da peça gira em torno de se Polinices, como traidor de Tebas, deveria ter direito a ser enterrado e receber os devidos ritos fúnebres, que são performados por Antígona ainda que sob a pena capital estabelecida por Creonte, e se a lei do rei é superior ao direito de uma irmã sepultar dignamente o seu irmão.

Aqui peço licença ao leitor para discorrer um pouco sobre a figura de Antígona, mesmo que sendo um mero amador a respeito do tema da cultura Grega. Antígona, filha do casamento incestuoso de Édipo e Jocasta (sua mãe), foi a única dos quatro filhos do casal que acompanhou o pai em sua desgraça após esse descobrir que houvera assassinado seu pai e se casado com a própria mãe. Ao descobrir toda verdade e arrancar os próprios olhos, Édipo parte para o exílio perpétuo a vagar nos ermos, e é acompanhado por sua filha Antígona, que mesmo sabendo dos pecados do pai, o acompanha e por ele zela.

Após a morte de Édipo, Antígona Retorna a Tebas e vê seus Irmãos Polinices e Etéocles disputando o trono que fora de seu pai. Após uma batalha infrutífera, os irmãos decidem se enfrentar em combate singular e, na luta, matam um ao outro. Etéocles que lutava como príncipe Tebano, recebe, de seu tio Creonte, o direito a ser devidamente velado e sepultado. Direito este não garantido a Polinices que se aliara à cidade de Argo, sendo então tratado como traidor.

E a partir disso podemos ver em Antígona o papel daquela que não julga os erros do pai ou do irmão, apenas os acolhe e lhes concede os direitos inerentes ao fato de serem humanos e merecerem respeito. E para além, Antígona incorpora a figura da desobediência civil, em que vê uma lei injusta, e mesmo sabendo que o descumprimento de tal norma pode lhe custar a própria vida, decide desafiá-la por entender haver leis maiores que aquelas dos homens e dos reis.

 

E apesar da antiguidade da obra, Antígona está presente em todos aqueles que hoje lutam para que independente do lado que estejam em uma guerra, as pessoas possam ter suas vidas poupadas, seus direitos resguardados e, em último caso, seus mortos sepultados.

Seja na Europa, África ou Oriente Médio, é constante a luta de corpos diplomáticos e organizações não governamentais para garantir, assim como Antígona, o mínimo de ajuda e dignidade por aqueles envoltos nos mais absurdos conflitos.

Me entristece profundamente ver que trechos como o que segue continuam melancolicamente atuais e que o ser humano nada mudou

“Antígona – Tu, Creonte, e todos que te apoiam contra mim verão meu cadáver e o de meu irmão se multiplicarem por milhares nessa guerra sem fim. A vitória de uma batalha enlouqueceu a todos e se atiraram sobre o chão inimigo, na cobiça da posse de uma terra que não lhes pertence. Mas já percebem que uma coisa é uma luta meritória em defesa do próprio lar, da própria vida, e outra, mais difícil, é a luta pela conquista da cidade alheia, em terreno estranho. Já me chegou aos ouvidos que os campos estão cheios de cadáveres nossos que, como Polinices, não receberam nem sagração nem sepultura. E agora não é por determinação, mas por incapacidade tua.”

Em 1969, Millôr Fernandes traduziu do grego original para o português por encomenda de José Renato para que a peça fosse montada em São Paulo tendo como atores principais Eva Wilma e Leonardo Villar. No prefácio da edição de 2021 feita por Adriane da Silva Duarte, esta relembra o contexto em que a peça foi produzida, logo após o AI5, e explica que Millôr deu à peça um prólogo que “além de localizar o espectador, apresentando um resumo da trama, o convida a apreciar essa velha história com olhos novos sob o signo da luta e da esperança”

Eis o Prólogo:
Ainda não acreditamos que no final
O bem sempre triunfa.
Mas já começamos a crer, emocionados,
Que, no fim, o mal nem sempre vence.
O mais difícil da luta
É descobrir o lado em que lutar.

 

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