Os grupos econômicos privados nunca foram afeitos à ideia de investir o seu rico dinheirinho em infraestrutura. Mesmo que o benefício decorrente do investimento venha a ser apropriado prioritariamente por eles, que ao longo da caminhada liberal têm sido sempre os herdeiros e grandes beneficiários dos investimentos públicos.
Essa é uma realidade palpável e de fácil comprovação, bastando para tanto observar com atenção o protocolo de construção dos loteamentos populares que são lançados na periferia das cidades brasileiras, nordestinas e/ou paraibanas. Antes do início de quaisquer empreendimento imobiliário, a providência adotada a priori é o desmatamento radical toda cobertura vegetal existente na área. Para tanto, fazem uso de um dispositivo de destruição indiscriminada chamado correntão, puxado por um trator, isso quando não faz uso da criminosa e não menos danosa queimada.
Concluída a devastação da cobertura vegetal, utilizam um pequeno trator de esteira para definir o arruamento. Em seguida fincam os postes da iluminação pública e espalham por todo arruamento, bandeirolas coloridas esvoaçantes que irão compor um visual mercadológico chamativo aos transeuntes, potenciais compradores.
O dispêndio financeiro privado feito na primeira etapa do loteamento é mínimo minimorum, e não passará disso, pois o grande investimento que é a construção da infraestrutura, via de regra será cobrado do setor público que nessa hora é classificado pelos incorporadores como “grande indutor do desenvolvimento.”
Em seguida o incorporador dará início a uma maratona de visitas aos órgãos públicos afins, sempre acompanhado de um tutor político, ou por outra tendo em mãos a posse de uma carta de apresentação de um político amigo para lhes abrir as portas.
. Na prefeitura municipal ele se apresentará orgulhosamente como um agente do progresso da cidade, ou seja, um grande benfeitor preocupado com o desenvolvimento do seu povo, do estado e do país e com “autoridade” suficiente para exigir do poder público: drenagem, pavimentação e recomposição arbórea da área que ele mesmo devastou. Nesse estágio não se dispõe a gastar um único centavo, pois receberá “o estimulo” do poder público.
. No órgão de saneamento, no caso da Paraíba a CAGEPA, ele cumprirá o mesmo rito de apresentação e exigirá a construção de: toda rede de distribuição de água tratada; todo microssistema de esgotamento sanitário, que vai desde a coleta, passando pelo afastamento e o transporte, até alcançar um coletor tronco ou um emissário disponível e em alguns casos pedem até mesmo a construção de unidades de tratamento isoladas. Tudo isso e mais uma vez, sem investir um só centavo.
. Antigamente a próxima visita do cronograma deveria ser feita com o mesmo propósito reivindicatório, à SAELPA ou à CELB hoje privatizadas, onde cumpririam o mesmo ritual. Como as empresas citadas já foram estatais e portanto conhecedoras do metier, o setor competente os recebe com o status de consumidores comuns, lhes entrega um boleto de pagamento e passa a aguardar a quitação para energizar o empreendimento. Essa será a primeira e talvez a única despesa.
. E depois? Depois é só vender os lotes por um bom dinheiro e correr para o abraço e, tal como faz um caubói ao fim do filme, partir para um novo empreendimento. Mesmo beneficiado como um abnegado “benfeitor,” ele não perde oportunidade para desclassificar a prefeitura, a CAGEPA e tudo quanto é público, queixando-se da “burocracia” que não lhes atende com mais prestimosidade.
É por experiências iguais a essas e tantas outras mais, que nós que já fomos passageiros de toda essa história, vivenciando tudo isso, temos obrigação de trazer a lume. Portanto, quando ouvimos falar em Parcerias Público Privadas-PPP imaginamos logo o ente privado entrando com um facão afiado e o setor público entrando com o frágil pescoço.
Para não nos determos apenas numa questão paroquial menor, lancemos o nosso olhar sobre as grandes obras de infraestrutura deste país ou do mundo capitalista, onde iremos nos deparar com vários exemplos bem pedagógicos da “generosidade” do capital privado.
Tomemos o exemplo mais recente que foi a execução da maior obra hídrica da América Latina, ou seja a Integração da bacia hidrográfica do Rio São Francisco-PISF, com as bacias hidrográficas do Nordeste Setentrional, uma obra ainda inacabada que já consumiu mais de R$ 12 bilhões dos cofres públicos.
Todo esse vultoso investimento foi e continua sendo feito exclusivamente com recursos públicos, haja vista o fastio endêmico da iniciativa privada em realizar investimentos estruturantes, o que não foi novidade no passado, nem tampouco o é no presente.
Alegam eles que além do investimento ser muito alto, o retorno é muito longo; que não há um marco legal bem definido que lhes assegure confiança plena; que os protocolos são muito exigentes; enfim, o fato é que não querem correr risco em nenhuma hipótese. (aqui)
O ente privado está permanentemente à espreita sob a sombra da frondosa árvore do Estado, aguardando a conclusão dos grandes e necessários investimentos públicos para deles se apropriarem por via das privatizações dadivosas.
É nessa ocasião que se movem freneticamente nos corredores do congresso nacional à procura de apoio político para se apropriarem dos ativos construídos com dinheiro público a preço simbólico. A parte do parlamento cuja eleição é custeada por eles, passa a operar a favor das generosas privatizações de ativos.
É quando as obras construídas com recursos do orçamento público, ao invés de servirem à nação como um todo, passam a gerar altos rendimentos para encher as burras do ente privado, em benefício de meia dúzia de milionários.
A inapetência do ente privado em fazer investimentos em grandes obras é decorrente de uma patologia financeira endêmica, agravada depois que o sistema financeiro ganhou mais força no manejo das ações ultra neoliberais e assumiu a hegemonia do processo de acumulação de capital privado. A especulação financeira passou a seduzir com a prática de juros estratosféricos e deveras sedutores. Para o ente privado essa modalidade de investimento é muito mais vantajosa financeiramente do que quaisquer investimentos destinados à produção de bens duráveis.
O mega industrial Antonio Ermirio de Morais teria informado talvez em tom de crítica, que se tivesse tomado conhecimento prévio das vantagens da especulação financeira, não teria nunca construído uma indústria sequer para ter dores de cabeça.
John Maynard Keynes foi o célebre economista inglês que tirou os Estados Unidos da América do Norte-USA do rombo escavado pela grande depressão econômico financeira de 1929. Como conhecedor das entranhas e dos amuos do capitalismo, na primeira hora do seu primeiro dia de trabalho, ele que era um liberal, colocou imediatamente o Estado na economia.
Determinou com respaldo do então presidente Roosevelt, que o Estado passasse a investir maciçamente em obras públicas estruturantes para absorver todo contingente de mão de obra ociosa.
Engana-se quem pensa que Keynes ao propor a geração de empregos públicos em profusão, tenha tomado aquela decisão histórica, apenas compadecido da legião de desempregados. Ledo engano, pois, Keynes era um liberal convicto. A real intenção dele, como intelectual orgânico do establishment era salvar o capitalismo da derrocada iminente. O fracasso do seu projeto seria a desmoralização completa do modelo liberal que poderia jogar o mundo nos braços do fantasma que tirava o sono deles, o comunismo internacional.
A missão principal de Keynes era, portanto, salvar o capitalismo exangue e nesse sentido ele cuidou de colocar imediatamente em funcionamento um antídoto chamado o New Deal ou Novo Acordo que era gerido diretamente por ele a ferrum manus em que o Estado era o carro chefe.
Percebam que nem num período decisivo de salvação do capitalismo, como ocorreu na grande depressão de 1929/1936 e afetou justo a basílica do capitalismo, o capital privado foi capaz de se mover. Permaneceu silente e apreensivo, à espera das ações saneadoras do Estado.
Foi quando Keynes colocou um grande remendo na proposta de Adam Smith com o herético New Deal, a bem da verdade um grande acordo emergencial de cúpula para salvar o capitalismo.
Os registros históricos mostram os agentes econômicos de Estado dos USA, conservadores e adeptos da ortodoxia econômica, incomodados com “o mau exemplo,” reclamando da excessiva contratação de mão de obra. A eles John Maynard Keynes sempre respondia com a frase: “se a eles não for dado o que fazer, mande-os escavar um grande buraco pela manhã e enterrá-lo durante o período da tarde!”
A resposta de Keynes era clara, o dinheiro do estado naquele momento seria aplicado sem parcimônia naquela atividade que mais rápido respondesse ao processo de recuperação econômica que era a construção civil.
Desconhecemos até hoje nos anais da história mundial, quaisquer registros de ações de socorro por parte do capital privado às repetidas crises do estado capitalista. Mesmo que esse socorro seja em prol da própria sobrevivência do sistema capitalista.
No caso dos USA foi o Estado e somente ele, que se dispôs a investir pesadamente para salvar a economia liberal daquele rico país do norte, da bancarrota econômica e do buraco financeiro em que foi metido.
Essa é uma prática recorrente do sistema capitalista através dos seus agentes operadores e seus beneficiários diretos, diante das crises. Permanecem silentes e nas sombras para depois da borrasca retornarem ao manche da economia, e depois decidirem cinicamente que, o estado deve se retirar imediatamente da economia devendo ceder espaço para a “eficiente” iniciativa privatizada.
É justo nesse ponto que o estado salvador é transformado na Geni da música do indefectível Chico Buarque de Holanda.
Passam a difundir massivamente através da imprensa por eles controlada, uma orquestrada campanha de descrédito contra o papel do estado na economia. Dizem eles que: o estado é pesado; que o corpo estatal é lento igualmente a um elefante; que é ineficiente e perdulário; que deve se retirar imediatamente da economia e abrir espaço para “eficiente” iniciativa privada cheia de bons predicados.
Estamos vivendo no momento atual da nossa história, um modismo contagiante de PPPs que são anunciadas como panaceia miraculosa para resolver todos os males das nossas carências.
Todavia pelo que temos observado, as propostas de PPP apresentadas pela iniciativa privada, devem ser consolidadas em condições tais, em que o ente econômico privado entrará com um afiado facão e o estado entrará com o pescoço.
Temos visto e ouvido os discursos otimistas do ministro Rui Costa, acenando para as PPP como uma solução salomônica. Segundo ele elas irão conferir celeridade às obras do PAC, resgatado e reabilitado que foi pelo presidente Lula no seu terceiro mandato.
Entendemos que o modelo econômico em voga no Brasil permite sim e mais do que isso, até estimula as parcerias público privada-PPPs, principalmente na modalidade de prestação de serviços, já que o ente privado não se dispõe a grandes investimentos. Aliás essa é uma prática que já existe de há muito nos serviços secundários. Contudo não podemos negar o forte receio que temos de uma privataria radical em que o estado foge até das suas obrigações intransferíveis e indeclináveis.
Essa apreensão que nos assalta, surgiu como a gota d’água que transbordou o cálice da nossa experiencia, tão logo o prefeito Cicero Lucena ter anunciado que está decidido a lançar um amplo programa de Parceria Público Privada-PPP na vetusta Parahyba, nossa capital.
Inicialmente iremos tentar rememorar qual é o verdadeiro papel do estado, mesmo que seja num modelo liberal burguês. Quais são os serviços que deveriam ser de prestação obrigatória por um gestor público que tanto fala em cuidar das pessoas. Vejamos em resumo quais são, ou seriam ou deveriam ser as atribuições do poder executivo municipal:
“O poder municipal é exercido pelo prefeito de cada município, que é auxiliado pelo vice-prefeito e pelos secretários municipais. Segundo a Constituição Brasileira de 1988, cada município é autônomo, sendo responsável pela sua própria organização, administração e arrecadação de impostos. Aos prefeitos cabe a administração dos serviços públicos municipais nas áreas da saúde, educação, transporte, segurança e cultura. Ainda é da competência dos prefeitos, apresentar projetos de leis às Câmaras Municipais, sancionar, promulgar, publicar, vetar e convocar extraordinariamente a Câmara Municipal quando necessário, e representar o município em todas as circunstâncias; requisitar à autoridade policial mais graduada no município a força necessária para fazer cumprir a lei e manter a ordem; prestar contas de sua administração, na forma estabelecida na Lei Orgânica do Município, nas disposições constitucionais e na legislação específica.” (1)
É sabido que a história é escrita pelos vencedores e que a classe dominante tem sido milenarmente vencedora, por conseguinte a redatora oficial dos fatos históricos. Seus intelectuais orgânicos sempre praticam a seletividade dos fatos em favor do segmento vencedor, padecendo de uma milenar de parcialidade.
Mutatis mutandis, no estado tripartite proposto por Montesquieu, a elaboração das leis é uma prerrogativa do poder legislativo. Como o legislativo é majoritariamente conservador e a grande maioria do parlamento pertence à classe dominante, as leis promulgadas sempre espelham a vontade, os anseios e as conveniências da classe citada.
Aqui na nossa pequenina e heroica Paraíba, o alcaide Cicero Lucena que é o atual prefeito da capital, no dia 29 de agosto de 2023 tornou pública a decisão de celebrar um programa de Parcerias Público Privadas-PPP. O anteprojeto proposto, envolve seis segmentos de PPPs que vão desde a gestão dos atuais hospitais e postos de saúde já construídos e em funcionamento, passando pelas áreas de estacionamentos das chamadas zona azul, até a gestão dos atuais cemitérios públicos construídos.
Há dois aspectos que podem ser determinantes em decisões como essa.
O primeiro deles é de aspecto legal pois a lei infelizmente permite uma tomada de decisão administrativa nesse sentido. Então no caso da Parahyba a decisão do alcaide está amparada em lei, difícil de ser modificada na câmara de vereadores composta de uma maioria esmagadora de aliados e alinhados umbilicalmente ligados ao prefeito.
O segundo aspecto é de caráter ético em que o governante deveria levar em conta o real interesse público. Rezam os princípios éticos que as decisões de quaisquer governantes sejam tomadas auscultando o povo que o elegeu, mediante consulta popular. Afinal, quando do período das campanhas eleitorais, o alcaide assumiu compromissos com o povo quando bradou nos microfones que iria “cuidar das pessoas.” Teria cansado?
Como as informações ainda são escassas e insuficientes, passaremos a aguardar o desenrolar dos fatos para que possamos fazer um melhor juízo de valor desse balão de ensaio, que a priori consideramos eivado de equívocos.
Aliás, balões de ensaio parece ser uma prática recorrente do prefeito Cícero Lucena. Basta ver o alarde provocado pelo balão de ensaio da quadra de Manaíra, seguido de um outro alarde na questão do alargamento das praias urbanas, desde a praia do Seixas até a fronteira com o município de Cabedelo em Intermares.
Por enquanto estamos atônitos com a possibilidade de a saúde pública ser transformada definitivamente em mercadoria, porém atentos às astucias e aos apetites insaciáveis do capital.
Aguardemos “allegro, ma non tropo!”
Referências:
A constituição dos Poderes: o Executivo nas três esferas da federação (al.sp.gov.br); (1)
Lei nº 11.079 (planalto.gov.br);
Parcerias público-privadas (PPP’s): o que são e características – FIA;
Cinco das dez maiores PPPs do país fracassaram ou o contrato está em risco | Brasil | Valor Econômico (globo.com);
Fotografias:
New Deal – HISTÓRIA – GEOGRAFIA – ARTE (wordpress.com);
Da crise de 1929 ao New Deal. Roosevelt e o New Deal (preparaenem.com);
lançamento festivo de um loteamento no intyerior do nordeste – Pesquisar (bing.com);
Santa Filomena concentra maior parte do desmatamento ilegal do cerrado piauiense | Piauí | G1 (globo.com);
E.S.F.R.A JN: ETE – Estação Tratamento de Esgoto (esfrajn.blogspot.com);
ESQUEMA DE UMA ESTAÇÃO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA (klimanaturali.org);
Projeto de integração do rio São Francisco com bacias hidrográficas do nordeste setentrional – Instituto de Engenharia