Na última década eu vivi acontecimentos históricos mundiais e nacionais que ficarão para sempre na história. Lembro-me de me sentir um espectador do mundo quando em 2011 começaram os movimentos que ficaram conhecidos como “Primavera Árabe”, que varreram o norte da África e que levaram a consequências que até hoje testemunhamos.
Pouquíssimo tempo depois, em 2013, vi, no Brasil, as maiores manifestações populares da história do país. Logo seguido de um processo de flagrante Golpe de Estado.
Nos últimos anos vi uma pandemia global e duas guerras se desenrolarem. Hoje decidi fechar o noticiário e observar a paisagem.
Durante o jantar, com a família reunida em torno da mesa, todos falando alto, conversas paralelas, cachorro embaixo da mesa e, como que para completar, o gato quis se juntar à festa. Ali, mais do que nunca pude valorizar o ordinário, o corriqueiro.
Fico imaginando famílias, como a minha, que no último século, décadas e até mesmo dias, nunca mais puderam se dar ao luxo de se encantar com o absurdo de um gato atrevido que decide se juntar à cacofonia familiar de um jantar de sexta-feira.
Quem se dedica a estudar a história do século XX e tem, como eu, acompanhado as atualidades do século XXI, talvez se sinta constantemente sobrecarregado pela consciência do seu entorno. Inúmeras vezes me repeti, aqui mesmo, afirmando que a imparcialidade ou a ignorância não são luxos aos quais podemos nos dar. Contudo, diante do que vemos enfrentando nos últimos tempos gostaria de fazer um adendo a essa crença: não podemos nos dar ao luxo de tornarmo-nos alheios ao mundo e mantermo-nos imparciais diante de situações de injustiça, contudo, mais do que o direito, temos a necessidade de nos mantermos sãos.
Há muito me abstenho de consumir os noticiários televisivos. Certas imagens e discursos me repulsam. Passei a consumir apenas notícias escritas, e alguns podcasts de confiança para me manter à par do mundo. Ultimamente, contudo, não tenho, literalmente, tido estômago nem para isso. Ouvir relatos de bombardeios, discursos de líderes políticos e votações em organismos internacionais tem embrulhado meu estômago. Acho que meu corpo está se recusando a ser o corpo de um cidadão ativo.
Talvez depois de dez anos que escrevo sobre política, estudo sobre história e movimentos fascistas, imperialistas e homicidas, quase como uma planta carnívora que se fecha ao toque de uma mosca, meu corpo, ao se perceber imerso em notícias de barbaridades humanas, se contorce em enjoos. Até quando precisarei ser didático ante a maldade humana?
Até quando precisarei escrever e falar sobre séculos passados para traçar a origem de conflitos da atualidade?
Outro dia vi o relato de um jornalista que dizia ter escolhido sua profissão para poder, um dia, noticiar a paz entre Israel e Palestina. Talvez ele se aposente sem fazê-lo.
Acredito que o que tem revoltado meu estômago não tem sido apenas as notícias de guerras e conflitos. Mas a falta de simples decência humana que em pleno século XXI vemos percorrer o mundo. Acredito ser irrelevante, a essa altura, se os ancestrais dos judeus já habitavam a área entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo há 5 mil anos, ou se eram os ancestrais dos palestinos que habitavam a região como afirmam outros relatos.
Ainda, pouco me importa a política que o Império Otomano adotava ante os povos que compunham o seu território. O fato é que as populações que ali estão têm igualmente o direito à vida e à liberdade. E isso deveria bastar para que o conflito não fosse outro que não o de ideias.
Meu estômago se contrai como uma contorcionista de circo que se dobra para caber em uma caixa ao ter que lidar com países sendo invadidos, pessoas sendo expulsas de terras simplesmente pelo fato de não terem pedaços de papel que lhes autorize estarem ali.
Daquele lado daquela fronteira imaginária criada por homem há muito mortos. Os homens criam Estados, fronteiras, leis, exércitos, armas, mas sua capacidade criativa se extingue ao verem que a realidade é muito mais complexa e forte que tudo isso. Como deuses ignorantes, os seres humanos parecem não reconhecer nada que se estenda para além da sua criação
Talvez seja hábito de alguém que nasceu num mundo onde eu posso professar a minha fé, meus amores e não precise ir à guerra defender meu direito de existir, defender minha casa e minha família. Talvez o mundo realmente seja, como dizia Cartola, um grande moinho que destrói todas as nossas ilusões e sonhos.
Gosto de pensar que ainda que o mundo seja assim, não precise sê-lo. Gosto de imaginar que o mundo possa ser um lugar onde ser humano baste para garantir o direito a termos onde morar, o que comer, e vivermos da forma que nos faça felizes. Mas hoje estou cansado, como acredito que muitos estejam.
Não desistamos ainda. Descansemos e talvez amanhã nos voltem as forças. Hoje me dei ao direito de apreciar as árvores que florescem com a primavera, as risadas ao redor da mesa e o atrevimento felino. Celebremos a vida, principalmente por aqueles que não podem celebrá-la.