Não muitos anos atrás eu escrevi um trabalho de conclusão de curso sobre uma proposta de emenda constitucional que, à época, gerou enorme comoção nacional. De um lado, como sempre, estavam o que outrora fora chamado de “BBB da Câmara”, em alusão ao reality show da TV Globo, eram as chamadas bancadas do “Boi”, da “Bala” e da “Bíblia”. Mais genericamente chamadas de “Conservadores” ou de “Bancada Evangélica” ou “Bancada Ruralista”. Hoje, é curioso pensar que meu trabalho foi quase um arauto dos quatro anos de governo bolsonarista ultraconservador que viriam adiante.
Naquele tempo dediquei quase um ano em pesquisar a teoria de Hannah Arendt, filósofa alemã que, dentre vários outros trabalhos, dedicou-se à sua famosa teoria: a Banalidade do Mal.
Em seu Livro, talvez mais famoso, “Eichmann em Jerusalém”, Arendt, foi a Jerusalém cobrir o julgamento do burocrata alemão Adolf Eichmann, encarregado da logística dos trens de “cargas” que levavam de víveres aos fronts do Reich a centenas de milhares de judeus, comunistas e homossexuais aos campos de concentração e extermínio.
O grande debate do livro gira em torno do questionamento se Eichmann era corresponsável por todas aquelas mortes ou, como o próprio alegava, apenas um burocrata fazendo o seu trabalho. E a partir dali surgia a teoria da banalidade do mal: em qual momento essas pessoas aparentemente comuns deixavam de perceber que o que faziam eram barbáries inomináveis e passavam a considerá-las banais, comuns?
Em que momento os parlamentares, no caso da minha pesquisa, passavam a ver crianças (todos aqueles com idade abaixo dos 18 anos de acordo com ONU) como seres plenamente responsáveis pelos seus atos e dignos de receberem penas iguais (na verdade proporcionalmente superiores) a adultos? Em que momento e por que, ainda que com inúmeras pesquisas cientificas contrárias, a Proposta de Emenda Constitucional para a Redução da maioridade Penal foi aprovada na Câmara dos Deputados?
Seriam os Deputados apenas “sujeitos de seu tempo” ou meros representantes de seu eleitorado? Ou havia ali a consciência de que o que faziam era danoso ou simplesmente o mal fora tão banalizado em nossa sociedade que perdemos uma marcação moral e a linha entre o certo e o errado simplesmente sumiu?
E foi a partir desse questionamento que eu embasei a minha pesquisa. Seriam os Deputados responsáveis pela aprovação daquela barbaridade em forma de Emenda Constitucional (que graças a Deus junta traças em alguma gaveta no Senado Federal), ou o mal já estaria tão banalizado em nossa sociedade que eles nada mais seriam que meras engrenagens numa máquina muito maior? O fato é que uma coisa não anula a outra. Sermos parte de uma sociedade má ou corrupta não nos dá o direito de sermos maus ou corruptos.
O questionamento reascendeu-se essa semana quando nesta terça-feira, dia 9 de outubro, a Comissão de Previdência e Assistência Social da Câmara dos Deputados, por 12 votos a 5, aprovou um projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo. O projeto Original de autoria do já falecido deputado Clodovil Hernandez (PTC-SP) propunha a regulamentação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, contudo, o Relator, Deputado Pastor Eurico (PL-PE), foi na direção oposta.
A versão original proposta, em 2007, pelo Deputado Clodovil Hernandez, nunca chegou a ser discutida pela câmara, contudo em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, considerando a omissão do Poder Legislativo a respeito do tema.
Contudo, a nova versão apresentada por Pastor Eurico essa semana, conta com 13 páginas com diversas declarações homofóbicas e chega a comparar a homossexualidade a doença.
O projeto, contudo, ainda precisa passar pela Comissão de Direitos Humanos, presidida pela Deputada Luizianne Lins (PT-CE), e pela Comissão de Constituição e Justiça, comandada por Rui Falcão (PT-SP). Ao contrário da Comissão de Previdência, as comissões não tem predominância bolsonarista e são presididas por deputados do PT, que é contra o texto.
Para virar lei, o texto teria de passar por outras comissões também pelos plenários da Câmara e do Senado, assim, as chances de o Congresso levar a diante a propostas são remotas e, ainda que as leve, seria um processo muito longo que poderia levar anos ou mesmo décadas.
Ainda que aprovada no Congresso, a lei poderia ser barrada pelo STF, já que a Corte já se pronunciou a respeito do tema.
Então, ainda que sabendo que as chances dessa proposta absurda realmente tornar-se lei serem mínimas, por que os bolsonaristas da Comissão resolveram ressuscitar o tema já pacificado pelo STF?
Bem, acredito, sendo simplista (como é o próprio movimento desses conservadores ignorantes) que se trata de um “fale bem ou fale mal, o importante é que falem de mim”. Mais do que a intenção de fazerem propostas que realmente importem para o povo brasileiro, ou mesmo para o seu eleitorado, deputados, senadores, governadores, prefeitos e vereadores têm a necessidade de se manterem vistos, ainda que para isso precisem gerar cortinas de fumaça que lhes mantenham às vistas do eleitorado sempre gerando uma narrativa de antagonismo com o poder posto. Nada mais efetivo para gerar heróis do que criar vilões.
Àqueles que se sobressaltaram com a notícia têm todo meu apoio, principalmente pelo fato de uma proposta como essa afetar não só a igualdade de direito entre todos os brasileiros, mas a vida de inúmeras famílias que contam com membros da comunidade LGBTQIAPN+, contudo, peço que se inteirem mais dos processos políticos e legislativos que movem o nosso país. Sermos alheios à política não é um luxo que podemos nos dar.
Se, ao nos depararmos com notícias como essa, compreendêssemos os trâmites e meandros dos processos político-legislativos de nosso país, não teríamos dado a esses conservadores a lenha que precisavam para as suas fogueiras.
Ao contrário, teríamos mostrado a força que possuímos ante tais arroubos de intolerância. Lutar, e talvez mais fundamental que isso, saber lutar, é fundamental para que mantenhamos um sistema democrático livre.
“No Terceiro Reich, o mal perdera a qualidade pela qual a maioria das pessoas o reconhecem – a qualidade de tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixarem seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação”
Hannah Arendt – Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal.
Mais um artigo robusto, atual é pertinente do articulista Antônio Couras e dessa feita ele inovou, fez uma pesquisa sobre o que os leitores preferiam e ofereceu três opções onde a vitoriosa foi este primor de artigo.
Parabéns!