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E ali eu me vi

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Lembro-me de uma discussão que tive há alguns anos com uma amiga da minha mãe a respeito de novelas e propagandas mostrarem o chamado “beijo gay”. Ao que ela dizia que achava que poderia deixar algumas pessoas desconfortáveis e todo o velho discurso que já conhecemos. Não era o discurso de uma pessoa preconceituosa. Longe disso. Mas um reflexo do senso comum que prevalecia até pouquíssimo tempo atrás.

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Ali tive a oportunidade de mostrar um novo ponto de vista que era, então, novo até para mim. Expliquei que ver dois adolescentes do mesmo gênero apaixonados e namorando em uma novela, ou até mesmo o processo de transição de uma pessoa trans, levaria ao grande público uma discussão que, geralmente, se mantém restrita a círculos acadêmicos ou pequenas “bolhas”. Expliquei como poderia ser salutar para um adolescente ver pessoas como ele retratadas em uma novela da Globo ou um comercial, e poder ver que o que ele poderia crer ser algo anormal ou um caso isolado, era, na verdade, algo comum e normal.

Naquela época começava-se a discussão a respeito do que hoje chamamos de “representatividade”. E que apesar de ser um conceito então amplamente discutido ainda é uma realidade inalcançada em muitas esferas.

Pude mudar a opinião de uma pessoa, e explicar como, quando se é diferente, a importância de se ver nos lugares. Saber que existem pessoas iguais a você, que seu cabelo, sua cor, seu sotaque, seu tamanho, sua sexualidade ou identidade de gênero são algo possíveis, são coisas normais e que você é digno de respeito pois é um ser humano pleno e não apenas uma “aberração”.

Nesta semana, estreou no serviço de streaming do Amazon a segunda temporada de “Belas Maldições”, uma série satírica baseada no livro de mesmo nome de autoria de Neil Gaiman, em que um anjo e um demônio, cansados das dinâmicas do céu e do inferno, decidem ficar na terra e viver junto aos humanos.

Nesta temporada, ao tentarem disfarçar os rastros deixados por um milagre, os dois decidem “dar um empurrãozinho” na relação entre a dona de uma loja de discos e a proprietária de um café. Ali, em momento algum, há a discussão a respeito da sexualidade das moças. Não há o velho e cansado arco da descoberta da sexualidade, foi tratado apenas como o caso de amor comum entre duas pessoas. Em seguida surgem personagens negros, trans, com deficiência… fora que anjos e demônios são representados tanto por atores como por atrizes, o que dá todo um toque especial na discussão do sexo dos anjos.

Neste mesmo diapasão, em plena novela das nove, na Globo, há o vai-e-vem entre Kelvin e Ramiro (este revolvendo ante a questão “dúvida” da sexualidade), séries surgem cotidianamente retratando adolescentes, jovens e idosos que se descobrem, se entendem e, fundamentalmente, vivem suas verdades ante gênero e sexualidade.

Acredito não ter capacidade de escrever aqui o quanto isso é importante. Principalmente para adolescentes e jovens que começam a entender o seu lugar no mundo, mas não só para eles. Há o caso de pessoas que passam uma vida como que sendo levadas por uma corrente social que os leva aos papéis de gênero e sexualidade majoritários que não os compreende de verdade.

A chamada “heterossexualidade compulsória” em nossa sociedade já define papéis de gênero antes mesmo da criança nascer. A máxima eternizada pela senadora, então ministra, Damares Alves, que “menino veste azul e menina veste rosa”, é uma violência ante qualquer pessoa minimamente diferente.

Coloca meninas no alto de torres a espera de príncipes e meninos em campos de futebol. Crianças muito jovens já são perguntadas se tem “namoradinhos” antes mesmo de saberem o que significa ter um namorado.

Espero que questões como a “ideologia de gênero”, falácia muito apreciada pelos acólitos do ex-presidente, se basearia na “doutrinação” de crianças para adotarem padrões de gênero e sexualidade fora da “tradicional” cis-heteronormatividade, voltem ao submundo da ignorância junto com as teorias da Terra plana. O que muitos parecem ignorar é que determinar uma identidade de gênero e uma sexualidade, muitas vezes, a crianças que sequer nasceram é a verdadeira “doutrinação”, pois ao contrário de mostrar que há um mundo de possibilidade quanto a amores e profissões, tolhemos a enorme força vital e criativa desses pequenos seres.

Ainda, quanto tempo levou para que pessoas que viviam uma vida “comum”, percebessem que seus relacionamentos abusivos, suas dinâmicas de gênero e até mesmo sua sexualidade se baseavam em uma dinâmica social que impunha o homem branco, cisgênero e heterossexual com o personagem principal de todas as dinâmicas sociais?

Precisou-se de muitos pioneiros e pioneiras para que pudéssemos ver que negros, indígenas, homossexuais, transgêneros, e tantos outros em locais de poder. Apenas nas últimas eleições elegemos deputadas federais trans, apesar de contarmos com alguns senadores e governadores homossexuais, ainda há toda uma questão racial envolvida.

Negros e indígenas, que são numericamente a maioria da população ainda são assustadoramente poucos em posições de poder.

A posse de Cristiano Zanin como novo ministro do Supremo Tribunal Federal, é prova que ainda temos um grande caminho a percorrer. Apesar do presidente Lula ter nomeado a primeira mulher indígena para chefiar a FUNAI e ser o primeiro a criar um Ministério dos Povos Indígenas, no âmbito do judiciário vemos a corte máxima do país totalmente compreendida por pessoas brancas e em sua enorme maioria por homens. Ainda, o poder legislativo também é, em sua composição, totalmente diferente das estatísticas populacionais de nosso país.

Se na esfera pública, que é conhecida por sua política de igualdade de gênero em termos de contratações e remunerações, o que esperar da iniciativa privada? Os concursos públicos não fazem diferenciação entre a contratação de homens e mulheres, mas é inevitável que observemos a predominância de homens, principalmente em cargos de poder.

Sem contar a insignificância de pessoas negras ingressando em carreiras de prestígio.

Por mais que a lei não permita a diferenciação entre homens e mulheres no funcionarismo público, as dinâmicas sociais impedem que mulheres ingressem em carreiras de ponta. Em muitos casos, a mudança de cidade ou uma rotina de trabalho com mais horas é incompatível com as múltiplas jornadas que ainda recaem sobre as mulheres.

Assim, a representatividade, seja na novela ou no STF, é fundamental para todos nós que não nos enquadramos no pequeno quadro de homens brancos cisgêneros e heterossexuais, possamos nos imaginar, e vermos que é possível que ocupemos lugares na sociedade onde nossa existência é respeitada e valorizada, e mais, que os novos pontos de vistas trazidos por pessoas diferentes possam cada vez mais engrandecer nossa sociedade e torna-la cada vez mais plural.

 

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