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Cigarros Índios

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Lembro-me de anos atrás me deparar em uma página de “O Xangô de Backer Street”, romance policial cômico de autoria do saudoso Jô Soares, com um anúncio da época do Brasil imperial que anunciava os famosos Cigarros Índios, cigarrilhas feitas de canabis indica, que tratavam de asma a flatulência.

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A conhecida maconha, uma das primeiras plantas domesticadas pelo homem pelas suas fibras, o chamado cânhamo, era até há pouco uma planta medicinal como outra qualquer. Cultivada inclusive nos jardins do Paço de São Cristóvão no Rio de Janeiro, sendo utilizada nas pajelanças imperiais no tratamento de insônias e cefaleias.

Como uma erva conhecida desde a antiguidade por seus inúmeros usos tornou-se ilegal e teve seu uso condenado pela sociedade é algo que não é amplamente conhecido. Mas muitas hipóteses giram em torno dos seus efeitos entorpecentes e a revolução industrial.

Muitos pesquisadores e historiadores revelam que durante séculos, na Europa, considerava-se a água um possível meio de transmissão de inúmeras mazelas, daí a famosa aversão europeia aos banhos, que eram considerados perigosos (não sem certa razão considerando que, principalmente nas cidades, os rejeitos humanos eram diretamente depositados nos cursos d’água que também abasteciam a população), sendo a água meio de transmissão de diversas epidemias de cólera, ou de intoxicação devido à proximidade das fontes de água com cemitérios, por exemplo.

Assim, diz-se que durante séculos a população do velho continente evitava o consumo de água, preferindo a ingestão de bebidas fermentadas e alcoólicas como o vinho ou a cerveja.

Inclusive entre as crianças a quem era servida uma versão diluída dessas bebidas a partir do café da manhã. Era comum o desjejum dos pequenos ser constituído de cidra aguada e pão. Então, pode-se dizer que durante milênios a população europeia se mantinha num constante estado de leve embriaguez. O que não é algo necessariamente ruim considerando as longas jornadas de trabalho de sol a sol guiadas pelo ritmo da natureza e das estações.

 

Contudo, alguns eventos chave na história humana foram fundamentais na mudança desse paradigma. A revolução industrial sendo o principal deles. A partir deste período, com seus enormes e ágeis teares, um trabalhador que estivesse em um leve estado de torpor poderia ter facilmente um membro decepado nas poderosas máquinas. Ao contrário dos períodos anteriores onde a semeadura e o pastoreio não exigiam sentidos tão aguçados nem uma velocidade de reflexos tão apurada.

A revolução industrial foi, sem dúvida, um divisor de águas na evolução humana. A partir de então, de início com os chamados “cercamentos” na Inglaterra, quando os poderosos tomaram para si as melhores terras para cultivo e criação de ovelhas para a lã, relegando ao povo terras improdutivas que levaram massas de desvalidos às cidades e que, assim, passaram a ser a mão de obra das nascentes indústrias, deu-se início desde a enorme desigualdade entre os trabalhadores e os donos do capital, disputas de terra e a falta de acesso a essas por grande parte da população.

Nesse diapasão, hábitos já consolidados como o consumo de bebidas fermentadas, em variados graus alcoólicos, passaram a ser desencorajados devido à completa mudança de vida de grande parte da população, principalmente a mais pobre e que mais trabalhava. A partir de então, máxima atenção era necessária, além de que com o advento da luz elétrica e a possibilidade de desconexão das pessoas com os ciclos da natureza as obrigava a passarem mais tempo em estado de vigília, com jornadas de trabalho que chegavam a 18h diárias.

Isso tudo atrelado à ascensão da burguesia e decadência dos sistemas monárquicos após a revolução de 1789, quaisquer “vícios” comuns no antigo regime passaram a ser sumariamente condenados. Dalí em diante máximas como “o trabalho dignifica o homem” do sociólogo alemão Max Weber passaram a pautar a moral social que condenava qualquer estado que não o de constante produção. O consumo de substâncias que diminuíam esse ritmo produtivo era altamente condenável exatamente por ir contra à mentalidade produtiva da época. E dentre as substâncias se encontrava a cannabis.

Não é coincidência que o café, importantíssima comoditie no Brasil há mais de dois séculos, teve o início de sua popularidade nessa época. A bebida de origem etíope ganhou grande popularidade pelas suas propriedades estimulantes altamente valorizadas no modelo produtivo de então.

Assim, desde então, aqueles que se diferenciavam deste modo produtivo de alto rendimento, utilizando a antiquíssima cannabis com seu efeito entorpecedor passaram a ter seu comportamento condenado. Comportamento apoiado em discursos higienistas da época que afirmavam (e ainda afirmam) que a verdadeira razão para a criminalização do cultivo, beneficiamento e consumo da planta, é que esta possui a capacidade de ser porta de entrada para outras drogas, argumento que ganhou força com o surgimento das chamadas drogas sintéticas.

No Brasil o estigma é antigo. Diz-se que a aversão da sociedade ao consumo da maconha vem dos tempos da escravidão quando a planta passou a ser “caçada” para que não fosse utilizada pelas pessoas escravizadas e que seu trabalho não fosse prejudicado pelos efeitos calmantes da droga.

Considerando que as cisões socio-raciais brasileira não são algo moderno, o estigma da droga perdura até os dias de hoje, somado à antiga crença de que são as populações negras e periféricas as responsáveis pelo trato desta erva. Estigma que se traduz na forma desigual como a polícia e as forças estatais lidam com negros e brancos que consomem e portam a droga.

Depois de anos de batalhas judiciais, no último dia dois de agosto, o Ministro do STF Alexandre de Moraes votou a favor da descriminalização da maconha para consumo próprio, faltando assim, apenas dois votos favoráveis para que se forme maioria no tribunal. A ação que corre desde 2015 tem por base o argumento da Defensoria Pública que “a criminalização interfere excessivamente na vida privada, estigmatiza dependentes e não contribui para a redução dos danos causados à saúde pública”.

A discussão a respeito da descriminalização das drogas é antiga e ampla nos círculos jurídicos e políticos no Brasil. Argumenta-se que aqueles que são presos, mesmo com quantidades ínfimas da droga, são majoritariamente negros e periféricos. Retrato de políticas estatais que visam a manutenção de políticas racistas e violentas. A descriminalização da maconha pode ser o início de um processo de reavaliação do sistema jurídico brasileiro que apesar de não ser formalmente racista, o é materialmente. Há uma clara criminalização da pobreza e da negritude. Esse julgamento pode ser a luz que precisamos para podermos reavaliar os bens jurídicos que devem ser protegidos nas esferas judicias brasileiras. Talvez vejamos a ênfase na proteção de bens jurídicos verdadeiramente importantes como a democracia, a liberdade e o bem estar do povo ao invés da manutenção de normas que visam perpetuar velhos preconceitos mercantilistas.

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