“(João Tavares) com 12 espanhóis bem concertados e satisfeitos, e 8 portugueses, em uma caravela equipada e concertada para tudo[…] partiu do porto de Pernambuco, a 2 de agosto de 1585; e aos 3, chegou pelo rio acima […] aonde se viu […] com o Braço-de-Peixe, e mais principais, no porto, que agora é a nossa cidade.
Assombrados os petiguares, primeiro com alguns tiros, presumindo mais força, fugiram […] saiu o capitão João Tavares, dia de Nsa. Sra. das Neves, por cujo respeito depois se pôs esse nome à povoação, e a tomaram por patrona, e advogada, debaixo de cujo amparo se sustenta”
Este é o relato do “Sumário das armadas que se fizeram, e guerras que se deram na conquista do rio Paraíba; escrito e feito por mandado do muito reverendo padre em Cristo, o padre Cristóvão de Gouveia, visitador da Companhia de Jesus, de toda a província do Brasil”. O “Sumário das armadas”, como ficou conhecido, que teve a sua redação concluída em 1594, é um dos documentos mais valiosos sobre os primeiros tempos da presença de portugueses e espanhóis nas terras da Paraíba.
Pela leitura do relatório jesuíta se constata que não houve a fundação de uma cidade no dia 5 de agosto de 1585, nem mesmo a colocação de um simples marco inaugural de uma povoação, nem também naquela data poderia ter ocorrido “a fundação da Paraíba”, como alguns, de forma absurda, chegam a dizer. O chamado Forte do Varadouro, que daria proteção à povoação nascente, somente foi iniciado em novembro de 1585 e concluído em janeiro do ano seguinte. Provavelmente, as primeiras edificações que foram construídas na povoação foram feitas em 1586, ou 1587.
Em sua obra “A primeira rua da capital paraibana – Uma contribuição para a história do alvorecer da Capitania da Paraíba (Fotograf, 2007)”, o rigoroso pesquisador e historiador Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins demonstrou que a rua a partir da qual a cidade se expandiu foi a Rua Nova (depois denominada Marquês do Herval, hoje General Osório) tendo as primeiras edificações sido feitas nas proximidades da atual Catedral Basílica de Nossa Senhora das Neves. Em 1609, cerca de duas décadas depois das primeiras construções, o Sargento-Mor Diogo de Campos Moreno, em visita de inspeção à Paraíba, somente encontrou esta única rua na cidade, que no seu relato tinha “muito boas casas de pedra e cal que vão se acabando e outras de taipa”.
A data de 5 de agosto de 1585, dia consagrado a Nossa Senhora das Neves, a Madonna della Neve dos antigos romanos, simbolizou, na Paraíba, a reativação da amizade, que havia sido rompida, entre os portugueses e os Tabajara, aliança que permitiu o enfrentamento dos aguerridos e numerosíssimos Potiguara que habitavam, há muito tempo, a região e que tornou possível a colonização pelos europeus das terras paraibanas. Os Tabajara estavam vivendo nas margens do rio São Francisco, quando se indispuseram com os portugueses, o que fez com eles deixassem o local e iniciassem, conforme sugerido por respeitados historiadores, uma grande viagem subindo um dos afluentes do São Francisco até alcançar as nascentes do rio Paraíba, de onde, seguindo o caminho das águas, rumaram para o litoral, onde já se encontravam no início de 1585. Por essa época, os ataques dos Potiguara ao Forte de São Filipe e São Tiago forçaram o seu comandante e os soldados espanhóis que lá se encontravam a abandonarem a fortaleza. O Forte de São Filipe e São Tiago fora construído, em 1584, pelo general espanhol Diego Flores de Valdés na margem esquerda do rio Paraíba próximo à sua foz (na área da atual localidade Forte Velho, no município de Santa Rita) e foi a primeira fortificação feita na Paraíba.
Embora persistam, ainda hoje, afirmações incorretas com relação à data de fundação da cidade, um fato é inquestionável: Nossa Senhora das Neves, foi tomada por sua “patrona”, conforme anotado no texto do “Sumário das armadas”. Nos primeiros registros documentais que são conhecidos, referentes à urbe que começava, a Virgem das Neves foi adotada para dar nome ao lugar: “Povoação de Nossa Senhora das Neves”, em documento de 1586, “Cidade de Nossa Senhora das Neves”, no ano seguinte, como está anotado em um registro de cessão de terreno.
Durante toda a evolução da urbanização da cidade, as festividades da comemoração da sua padroeira, a “Festa de Nossa Senhora das Neves” ou a “Festa das Neves”, como ficou sendo chamada, foi sempre a data mais importante para os seus habitantes. Por mais de três séculos, os festejos foram de caráter estritamente religioso. Nos primeiros anos do século 20, surgiu uma parte profana, com pavilhões, barracas e diversões, que chegaram até mesmo a sobrepujar os atos religiosos. Mas, no tempo em que tudo ainda se resumia à celebração religiosa consagrada à Virgem, o pastor metodista norte-americano Daniel P. Kidder chegou à Capital da então Província da Paraíba encontrando-a em um clima de festa, que ele descreveu na obra “Sketches of residence and travels in Brazil”, publicada, em 1845, nos Estados Unidos e que foi editada no Brasil com o título “Reminiscências de Viagens e permanência no Brasil”:
“Soubemos que naquela ocasião é que se realizavam as maiores festividades religiosas do ano, na Paraíba, pois no dia 5 de Agosto celebrava-se a festa de Nossa Senhora das Neves, padroeira da cidade. Essas festas, como tôdas as outras de grande importância, foram precedidas de uma novena, isto é, nove “rezas” realizadas em noites sucessivas. Em cada uma dessas noites havia uma festividade diferente, do qual se encarregava um cidadão que, naturalmente, procurava sempre exceder o outro na pompa e no brilho da festa a seu cargo.
Convidaram-nos para sairmos à noite a-fim-de ver aquilo que achavam não poder deixar de nos ser profundamente interessante. A matriz, onde se celebrava a festa, ficava mesmo nas vizinhanças. Postámo-nos em uma das extremidades de um pátio oblongo. A frente da igreja estava iluminada por velas em lanternas quebradas, dispostas em tôrno da porta e à frente de uma imagem colocada em um nicho prêso à cúpula. Grandes fogueiras ardiam em vários pontos do pátio. Em tôrno delas acotovelavam-se negros ansiosos por queimar baterias de fogos a certos trechos dos atos litúrgicos que se realizavam na igreja. Terminada a novena, todo o povo acorria ao campo, para apreciar os fogos de artifício que se queimavam desde às nove horas até depois de meia-noite.
Décadas depois da visita de Daniel Kidder à Paraíba, a “Festa das Neves” ainda mantinha o mesmo formato que ele presenciara. Cada uma das noites da novena era de responsabilidade de determinado grupo social. “Noite da Justiça”, “Noite dos Artistas”, “dos Vendilhões”, “dos Lojistas”, “dos Empregados Públicos”, “dos Militares”, “dos Caixeiros”, “dos Estudantes” e, por último, a “Noite das Senhoras”. A festa se encerrava com uma procissão que partia da Matriz e que contava com a participação do Presidente e demais autoridades da Província, sendo a imagem de Nossa Senhora das Neves transportada por uma guarda de honra formada pelo batalhão da Guarda Nacional. O itinerário das ruas nas quais o cortejo passaria era previamente divulgado, como foi o caso do aviso publicado, em 6 de agosto de 1864, no jornal O Publicador:
“Procissão das Neves – A procissão de N. S. das Neves percorrerá as ruas seguintes: Nova, Baixa, S. Gonsalo, Palacio, Mangueira, Mercez, Cadèa, Carmo, Direita, Ladeira das Pedras, Boa Vista, Convertidas e Arêa, devendo sahir da matriz ás 4 horas e meia da tarde. Roga-se, pois, aos moradores das mencionadas ruas hajão de mandar limpal-as e aceial-as, tornando-as decente para esse acto religioso”.
Após cumprir o seu trajeto, a procissão retornava para a Matriz onde era realizada a última noite de novena que se encerrava com uma queima de fogos. A notícia da festa da padroeira da cidade, publicada em um jornal local, destacava não ter ocorrido “o menor incidente desagradavel” durante o período de festejos:
“A tarde sahio com todo o brilho a procissão de nossa inclita Padroeira, que percorreu os dois bairros, acompanhada por immenso concurso de pessoas de todas as classes, que são suas fervorosas devotas […] Recolhida a procissão, á noite, teve lugar a ultima noite de novena pertencente ás senhoras, a qual esteve esplendida além de nossas previsões […] Finda a novena foi queimado o fôgo, ao que se prestou a noite, que esteve admiravelmente linda; permittindo a reunião de uma extraordinaria porção de povo, que enchia toda a rua Nova. A cidade illuminou-se e a rua Nova esteve magnifica […] Não devemos passar em silencio, que houve grande concorrencia em todas as noites de novena, tamanha accumulação de povo, sem que apparecesse o menor incidente desagradavel, o que honra a indole do nosso povo”
A “Festa das Neves” foi se modificando com o decorrer dos anos. Não existem mais novenas com noites de “Caixeiros” nem de “Vendilhões”, profissões que o tempo fez desaparecer. As ruas pelas quais a procissão da Virgem percorria mudaram de nome e até de traçado. Só uma coisa não se alterou nesses 438 anos que se passaram desde o dia que João Tavares e o chefe Tabajara Braço-de-Peixe se acertaram: a Nossa Senhora das Neves continua como “patrona, e advogada, debaixo de cujo amparo se sustenta” a cidade, conforme escreveu, há mais de quatro séculos, o padre jesuíta autor do “Sumário das armadas”.