Cotidianamente, enquanto me dedico aos meus estudos, me deparo com debate a respeito da historiografia contemporânea.
Um dos exemplos em que há grande debate é o que envolve o processo de separação de Brasil e Portugal. Incontáveis são os estudiosos que defendem diferentes datas para o que chamamos de “dia da independência”. Alguns defendem que o processo de independência do Brasil se deu quando, em 28 de janeiro de 1808, Dom João, o então príncipe regente, assinou o decreto de abertura dos portos brasileiros às chamadas “nações amigas”, o que punha o fim do exclusivo metropolitano em que o território brasileiro era uma ilha que só poderia se comunicar com a metrópole portuguesa.
Outros, debatem que, ainda que no ano de 1822, a independência pode ter se dado em 9 de janeiro, o chamado “Dia do Fico”, quando Dom Pedro contrariara as exigências das Cortes que exigiam seu retorno a Portugal, também há quem defenda que a independência ocorreu quando em 3 de junho fora convocada uma assembleia constituinte, ou em 2 de setembro quando Dona Leopoldina, atuando como regente, assinara o decreto que punha fim a subordinação do Brasil a Portugal, ato que dias depois culminou com o chamado “Grito do Ipiranga”, quando seu marido proclamara a independência. Item convenientemente esquecido pela historiografia tradicional fundamentalmente machista. Outras datas possíveis são o 12 de outubro com a aclamação de Dom Pedro ou o 10 de dezembro com sua coroação.
Por fim, há quem defenda que o processo de independência se deu de fato apenas com a partida de Dom Pedro para Portugal, em 7 de abril de 1831, e com sua abdicação ao trono do Brasil em favor do seu filho Pedro, então com apenas 5 anos de idade. Isso porque até então, com a morte de seu pai, Dom João VI, Dom Pedro herdaria o trono de Portugal e poderia unir as duas coroas que formavam o antigo império transatlântico.
Com a sua abdicação, ficava o Brasil finalmente separado dos destinos da antiga metrópole, já que o jovem Pedro II não tinha pretensões sobre o trono europeu que era disputado entre sua irmã Maria da Glória e seu tio Miguel.
Fiz toda essa introdução para que possamos melhor compreender que um fato definitivamente marcante para a constituição de uma consciência nacional e para a formação do próprio Estado Brasileiro é algo altamente debatível. Assim, acredito que podemos discutir a respeito da máxima de que a história é escrita pelos vencedores. O que acredito não ser verdade, pelo contrário: a história é contada por quem escreve a história.
Parece algo altamente simplista, mas nesse caso a simplicidade é o que torna o fato incontestavelmente verdadeiro.
Eu, como acredito ser o caso da maioria dos meus leitores, talvez consiga lembrar de que, na escola, aprendemos que a história se inicia juntamente com a invenção da escrita. Antes disso existia o que convencionou-se chamar de pré-história. Ou seja, o conceito de história é inerente à escrita. A história pertence à escrita, ao registro e à memória.
Na última semana, tive acesso a uma reportagem da BBC Brasil que contava a história do arquiteto baiano Zulu Araújo, de 63 anos, que ao fazer um teste de DNA juntamente com outras 150 pessoas, identificou que ele faz parte do grupo étnico denominado Tikar, originário do atual Camarões. Até então desconhecido entre os descendentes dos escravizados trazidos para o Brasil, acreditava-se que fossem predominantemente angolanos ou iorubás. O que pôde dar nova luz à extensão do trafico de escravizados que perdurou por quatro séculos no Brasil.
Um ponto levantado por Araújo é o de que as pessoas que foram escravizadas e vítimas do tráfico atlântico, que trouxe mais de 3 milhões de africanos para o Brasil, foram vendidos aos traficantes pelos seus próprios conterrâneos, quando não por aqueles do seu próprio povo.
Assim, proporcionado pela produtora de audiovisual que propôs os testes de DNA, viajou para Camarões e ao chegar ao local onde hoje vive o povo Tikar, Araújo, fez uma pergunta fundamental ao rei de sua etnia: por que eles haviam permitido ou participado na venda de seus ancestrais para o Brasil, ao que o rei pediu um dia para poder responder, e quando fez, disse que caso não tivessem sido vendidas, as pessoas que foram traficadas e submetidas a trabalhos forçados nas américas teriam sido mortas,
Ainda hoje a escravidão é um tabu no continente africano pois entende-se que sem a conivência das elites continentais, que também lucrava com o comércio de pessoas, a escravidão não teria atingido as proporções que atingiu em termos históricos, econômicos e espaciais.
E como bem destacado por Araújo, a população negra, não só brasileira, mas toda aquela que descende de pessoas escravizadas que foram trazidas para as américas, sofrem de uma falta crônica de história. Contudo, apesar de seus antepassados terem sido tratados como mercadorias e terem tido toda a sua memória e identidade apagadas no processo de escravização, hoje, com a ajuda da tecnologia, ao menos a nível genético, sobreviveu a memória de seus corpos e daqueles que vieram antes de nós.
Incontestavelmente significativo, o caso da escravidão e de seus descendentes que hoje ainda vivem no nosso país, infelizmente não é o único. A memória dos povos originários do nosso continente não foi bruscamente apagada como no caso dos africanos, mas foi diluída ao ponto do esquecimento através de gerações de miscigenação e assimilação.
Enquanto alguns de nós podem ter suas árvores genealógicas traçadas por gerações até o desembarque dos colonizadores em nossas terras, ainda assim ignora-se uma lacuna intransponível: a miscigenação entre colonizadores e nativos no que Jorge Caldeira chama de “política dos genros”, em que, aproveitando-se da tradição dos povos originários de terem suas filhas casadas sempre com homens de outras tribos e etnias, os colonizadores passaram a se casar com mulheres indígenas para que com isso tivessem legitimidade para requerer a força dos guerreiros de seu povo para guerrear com tribos rivais e paulatinamente irem assegurando seu poderio sobre pessoas e território.
Assim, enquanto a premissa de que a história é contada por quem a escreve continua verdadeira, a tecnologia vem nos dando novas formas de escrevermos nossa história. O que foi apagado ou nunca sequer foi registrado nos livros de história, hoje ganha novas tintas através das tecnologias. Torçamos para que, num futuro não muito distante, possamos proporcionar a todos o direito à sua história, e que as tragédias passadas não nos permitam o esquecimento e a reincidência de erros grotescos.