Dia 14 de junho ocorreu um dos mais mortíferos naufrágios da história recente do Mediterrâneo. Um barco abarrotado com mais de 700 migrantes, em sua maioria do Paquistão, Síria e Egito, dentre os quais se contavam mais de 100 crianças, afundou na costa da Grécia sem que lhe acudisse a guarda costeira local.
Quatro dias depois, dia 18 de junho, o submarino “Titan”, que levava cinco bilionários para ver os destroços do famoso Titanic, perdeu contanto com sua base de operações, o que levou operações de resgate coordenadas pela Marinha dos Estados Unidos e as guardas costeiras americana e canadense.
Cerca de dez barcos foram usados na busca dos submergível. As buscas e as notícias foram acompanhadas por milhões de pessoas ao redor do mundo, até que foi anunciado que o submarino provavelmente havia implodido matando todos os seus ocupantes.
A diferença da cobertura midiática e o interesse global que se mobilizou em torno das tragédias marítimas foram objeto de caloroso debate tanto nos veículos de notícias como nas redes sociais. Acusa-se a imprensa da ênfase dada ao Titan e seus 5 bilionários em comparação com o drama das centenas de refugiados que perderam sua vida na fuga da pobreza e em busca de uma vida mais justa.
Acredito que tratar do tema de que, sim, algumas vidas são mais valiosas que outras, é um lugar comum no Brasil, onde inúmeras são as vítimas dessa estrutura sócio governamental que sacrifica muitos em prol de poucos. Não podemos esquecer que esses muitos e esses poucos tem tons de pele opostos.
Sempre são pessoas “de cor”, sejam elas paquistanesas, árabes, negras, indígenas… que têm o valor de suas vidas ignorado em prol de uma minoria branca e privilegiada.
Já tratei aqui outras vezes a respeito desse “daltonismo” social em que vemos claramente o emprego de dois pesos e duas medidas em relação à forma que pessoas são tratadas de acordo com a cor de sua pele e seu posicionamento na pirâmide social. Sinto que estou constantemente me repetindo ao tratar sobre o assunto que, na minha nada humilde opinião, já deveria ter sido superado mais de um século atrás.
Entretanto, se necessário for, irei me repetir por mais um século, até que eu possa ver que a cor da pele, a etnia, ou o lugar de origem de uma pessoa não a faz ser menos digna de respeito, cuidado e socorro que qualquer outra.
No transcorrer dos anos, desde a minha graduação, eu sinto que alguns temas são como vozes fugidias que ouço me chamando pelos cantos. Incialmente se referiam à necessidade de observação das atrocidades cometidas em prol de “um povo, uma terra”, mote nacionalista e racista que levou ao extermínio de todas as minorias em que os membros do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Partido Nazista, pôde por suas mãos.
Em seguida, voltei meu olhar para o meu país e pude ver que algo assustadoramente semelhante se dá cotidianamente ao meu redor. Hoje, observo com coração pesado que Rússia e Ucrânia brigam sob os holofotes do mundo, enquanto a Etiópia se despedaça em uma guerra civil invisível aos olhos do mundo.
Foros globais econômicos discutem estratégias econômicas e de desenvolvimento sustentável enquanto populações de Madagascar à Amazônia se vêm sem comida, o mais básico insumo à sobrevivência, por um descaso global com os mais vulneráveis.
Os anos vêm me mostrando que as atrocidades cometidas na Alemanha nazista durante a segunda guerra mundial foi apenas o ponto mais destacado de uma história de séculos em que populações não europeias ou, ainda que europeias, mas marginalizadas, se tornaram vítimas de ações que buscavam seu extermínio. Loucos, leprosos, homossexuais, ciganos, judeus, imigrantes; católicos ou protestantes dependendo do tempo ou do espaço, todos foram vítimas da sua condição de ser.
Inglaterra ou União Soviética mataram igualmente de fome, em pleno século XX, milhões e milhões de pessoas, na Índia e na Ucrânia, respectivamente, em prol de alimentar e suprir os esforços daqueles que estavam no “centro” de suas respectivas esferas de poder.
Ultimamente venho me debruçando em questões do mundo periférico e observo que o discurso do “nós contra eles” não se restringe apenas ao continente europeu. Indianos e Paquistaneses se digladiam desde pelo menos sua independência da Inglaterra; dentro da própria índia, hindus e mulçumanos se destroem desde que os primeiros árabes chegaram ao subcontinente há mais de 400 anos; hindus se estratificaram numa relação étnico-estatal-religiosa que existem cisões intransponíveis dentro de sua própria fé.
Ao fazermos recortes como o que ocorre em países como Nigéria, Ruanda, Etiópia e tantos outros, vemos que a identidade grupal ou tribal ainda subsiste numa forma perigosa que, não diferente de outros casos, separa uma população por sua etnia e a uns garante direitos e a outros o ostracismo e a morte.
No Brasil, cotidianamente, vemos, fundamentalmente, jovens negros serem forçados às margens da sociedade e, posteriormente, serem postos numa caçada canibalesca em que as forças do Estado matam aqueles que deveriam proteger.
Gostaria de terminar esse artigo com uma nota mais animadora sobre o mundo e a humanidade, mas me parece ser algo quase inerente ao ser humano dividir o mundo entre o “eu” e o “outro”. É verdade que a forma que aprendemos a decodificar o mundo desde a nossa infância se dá através da observação do outro, e, a partir disso, distinguimos se fazemos parte ou não de um grupo.
Não preciso citar grandes filósofos para corroborar meu ponto, a mera leitura de “O Patinho Feio”, conto de Hans Christian Andersen, nos mostra como é forte a necessidade do pertencimento. Entretanto, nem autores de contos infantis, nem políticos ou teóricos conseguem achar uma solução para o sentimento de que Cisnes são melhores que patos, ou que a existência do “eu” precisa, necessariamente, da inexistência do “outro”.