Outro dia enquanto ouvia no rádio do carro algum debate político de natureza menor, minha mente, como de costume, começou o seu processo habitual de divagar pelo ermo do infinito dos pensamentos. Nessa circunavegação psíquica me perguntava o motivo de a sigla que se refere aos grupos que não se enquadram na categoria de Cisgêneros Heterossexuais precisava ser tão meticulosamente enunciada. Não seria mais fácil alguma terminologia como “Pessoas não cis-heterossexuais” ou algo do gênero? Mais fácil poderia até ser, mas não cumpriria o efeito a que se propõe.
A exaustiva sigla LGBTQIAPN+ pode parecer um preciosismo desnecessário com os seus dez caracteres, mas a história por trás dela é fundamental para a visibilidade dos excluídos. Originalmente, toda a “narrativa”, se podemos assim chamar, girava em torno do simples termo “gay” que se aplicava não só a homens homossexuais como hoje entendemos, mas a toda a comunidade que não se encaixava no padrão social da hetero-cisgêneridade. Com o passar dos anos já na epidemia de AIDS, as lésbicas tiveram papel fundamental na luta para a pesquisa, tratamento e principalmente para a abertura e expansão do debate e luta por direitos. Assim, nasceu a primeira sigla que se resumia a GL (Gays e Lésbicas).
Com o passar dos anos, ainda nos anos 2000 ouvíamos frequentemente a sigla GLS que significava Gays, Lésbicas e Simpatizantes, mais comum no Brasil.
Com o avanço da internet e a ligação entre as comunidades marginalizadas ao redor do globo, passou-se a haver uma maior homogeneização nos termos, tendo tanto o discurso, quando as próprias terminologias, surgido nos EUA e se espalhado para o mundo.
A partir do final da década de 1990 e dos anos 2000, a discussão passou a ser mais aberta e a englobar temas como feminismo (que já vinha sendo debatido entre as lésbicas havia muito tempo), bem como o englobamento de Bissexuais, Travestis (uma denominação particular da América Latina) e Pessoas Transsexuais e Transgêneros. Assim, o “L” passou a encabeçar a sigla como uma forma de mostrar que, ao contrário do que era historicamente praticado, a discussão não deveria se iniciar nem se restringir aos homens gays e deveria enfocar também as mulheres lésbicas e outras minorias nessa equação. Surgia assim a famosa sigla LGBT.
Subsequentemente adicionou-se o termo “queer”, um termo de língua inglesa utilizado para designar qualquer pessoa que não se enquadre na heterocisnomatividade, ou seja, que não se identifica como o padrão binário de gênero, tampouco se sente abarcado por outra das denominações já presentes pois esses podem restringir a amplitude de seus sentimentos e vivência.
Aqui, acredito ser frutífero um pequeno esclarecimento, essa sigla engloba duas coisas distintas: gênero e sexualidade. Em um resumo muito simplório, poderíamos simplificar gênero a “quem eu sou”, e sexualidade a “quem me atrai”. Sendo coisas completamente distintas. Identidade de gênero se refere a como uma pessoa se identifica como indivíduo, e no caso das pessoas trans, o gênero biológico (aquele revelado nos cafoníssimos chás de revelação) e o gênero que o nosso cérebro e coração se identificam são distintos. Assim, uma mulher trans é aquela que, ao nascer foi designada como sendo do gênero masculino, mas ao passar a ter consciência de si (as vezes desde muito cedo, ou em outros casos depois de uma vida inteira), percebe que a biologia do seu corpo não condiz com a realidade de sua essência, identificando-se como mulher, e homem trans é aquele que foi designado como sendo do gênero feminino ao nascer, mas não se identifica como tal.
Sexualidade, por outro lado, não anda, necessariamente de mãos dadas com identidade de gênero. Sendo não só possível, como muito comum, que pessoas trans sejam heterossexuais, por exemplo.
Mas voltando à sigla, o termo “queer”, que vem do inglês, ao ser traduzido para o português, pode ser definido como “estranho”, “excêntrico”, e foi ressignificado pela comunidade como muitos outros termos. Ainda, o “Q” pode significar “questionando”, numa referência ao movimento que muitas pessoas experimentam ao compreenderem que não existe uma necessidade de fazermos todos parte de um modelo cisgênero-heterossexual
Quanto a letra I, essa se refere a “Intersexo”, que designa pessoas que nasceram com uma constituição cromossômica diferente do XX ou XY, podendo ter ou não genitálias ou sistemas reprodutivos diversos do que o compreendido por homem/mulher. Atualmente, a ciência reconhece pelo menos 40 variações genéticas, dentre as quais estão XXX, XXY, X0, etc.
Quanto à letra “A”, essa se refere a assexuais, que são indivíduos que não sentem nenhuma atração sexual por qualquer gênero. Isso não significa que não possam ter relacionamentos ou se envolverem em relacionamentos amorosos e afetivos com outras pessoas. Oposto dos pansexuais, representados pela letra “P”, que são pessoas que sentem atração sexual por pessoas independentemente de sua identidade de gênero.
Quanto a Bissexualidade e Panssexualidade ainda há um debate sobre os termos, mas podemos dizer que se referem a uma questão mais de autoidentificação do que propriamente de uma diferença conceitual já que ambas as denominações englobam pessoas que se sentem sexualmente atraídas por pessoas independentemente de sua identidade de gênero.
A última letra da atual sigla, o “N”, se refere a “Não-binaridade” que é uma identidade de gênero que, ao contrário da intersexualidade, não se refere ao gênero biológico, mas a não identificação com um sistema de gênero baseado numa binaridade homem/mulher, podendo-se seguir infinitas possibilidades de existência de gênero sem seguir um padrão, performance ou papel pré-estabelecido pela sociedade.
Por fim, o sinal de adição colocado ao final da sigla indica que são quase infinitas as possibilidades de identidade e sexualidade compreendidas na condição humana, sendo não só fluida em um único indivíduo, como tendo seus conceitos alterados dependendo do tempo e espaço em que estamos. Quando se retira o “ponto final” assinala-se que esse campo de existência e estudo não é algo finito e definido, mas algo em constante descobrimento, debate e evolução.
Rezei todo esse rosário para comentar, sem entrar em detalhes, porque como diz o ditado “não vou ficar batendo palmas para ver doido dançar”, a fala incrivelmente transfóbica que um deputado federal eleito pelo estado de Minas Gerais, proferiu no último dia 8, dia internacional da mulher. Ao invés de aproveitar o seu espaço na tribuna para falar que em pleno 2023 ainda somos o país que mais mata mulheres e pessoas trans, falar da baixa representatividade política que as mulheres ainda têm no nosso país e tantos outros pontos essenciais para que consigamos promover uma verdadeira igualdade e amplo acesso a direitos políticos às mulheres de nosso país, a cavalgadura mineira meteu uma peruca loira e se encarapitou na tribuna e começou e a proferir o seus já esperados impropérios.
Eu realmente não sei o que levou o povo de Minas Gerais e fazer desse cidadão o deputado mais votado do país, certamente não foram seus 26 anos de idade nem a sua inteligência, mas fato é que ao contrário de mim, talvez acostumados a chamarem seu estado de “terra dos loucos”, o povo mineiro não só bateu palmas, mas deu uma orquestra e uma ovação de pé a essa criatura que ao encarapitar tortamente a peruca loira em sua cabeça passou a dizer possuir local de fala como mulher e tantas outras barbaridades que me recuso a repetir neste espaço.
Além da ignorância de temas correntes, como o fato de existirem pessoas com orientações sexuais e identidades de gênero das mais diversas, também ignora, talvez por um “orgulho branco” que aqui, de Norte a Sul das Américas, não existia nenhum povo sequer que, antes da chegada dos colonizadores europeus, resumisse a existência humana a uma norma de gênero ou sexualidade dual, havendo a compreensão da existência de, no mínimo, três gêneros, e em alguns povos se estendendo a mais de uma dezena deles.
Normalmente me pergunto nesses casos se o discurso se baseia em medo, ignorância ou pura maldade. Acredito que um homem branco, cisgênero e heterossexual, ocupando um dos cargos mais importantes do país não possa se dar o direito de ter medo ou ignorar a existência de minorias vulneráveis as quais são mortas cotidianamente resultado de crimes de ódio incentivados por discursos como o dele, desta forma nos sobra apenas a hipótese óbvia.
Mas não deixemos que a maldade nos assuste, como a enorme sigla nos mostra, somos muitos, e não estamos sós. Nossa comunidade tem muitos aliados e não somos poucos nem fracos. Pressionemos para que jamais voltemos a viver o absurdo que foram os últimos quatro anos, façamos nosso barulho e nossa parte para que o futuro seja melhor para todos e jamais regressemos na conquista de nossos direitos e liberdades.