Em novembro de 1809, quando Henry Koster, atendendo recomendação médica, deixou Liverpool com destino ao Recife, ele somente pensava em melhorar a sua saúde no clima tropical. Koster era filho de ingleses, nascido em Portugal, mas foi para a Inglaterra ainda criança. Devia ter, ao chegar ao Brasil, alguma condição financeira que o permitiu viajar, por algum tempo, por Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão. Depois de percorrer essas Capitanias, arrendou um engenho com escravaria próximo ao Recife e, em seguida, tornou-se plantador de canas, em regime de “meia”, em Itamaracá.
Em 1815, Henry Koster teve que retornar para a Inglaterra. Como havia feito anotações sobre as suas viagens pelo Nordeste brasileiro foi instado por amigos, entre eles o poeta e escritor Robert Southey (autor de uma respeitada “História do Brasil”), a publicar o relato da sua jornada. O livro “Travels in Brazil” foi publicado, no ano seguinte, na Inglaterra, e Koster escreveu no prefácio que “as orientações e a vasta biblioteca do Sr. Southey foram de grande auxílio” para a obra, que tinha gravuras elaboradas a partir de esboços que haviam sido feitos por Koster. “Travels in Brazil” alcançou grande repercussão, sendo publicado nos Estados Unidos, na Alemanha e na França. No Brasil, a tradução (do original em inglês) da obra de Koster somente foi publicada em 1942, com o título “Viagens ao Nordeste do Brasil”, feita pelo escritor Luiz da Câmara Cascudo, que acrescentou esclarecedoras notas explicativas. Para Câmara Cascudo:
“O depoimento de Koster é o primeiro, cronologicamente, sobre a psicologia, a etnografia tradicional do povo nordestino, o sertanejo no seu cenário. Depoimento, completo, apaixonado de pormenores, rico de cor, de movimento, de noticia […] Viaja anotando tudo, os homens, as raças, as paisagens, os animais bravos, a natureza dos terrenos atravessados, crianças, tarefas agrícolas, produtos, pecuária, almas-do-outro-mundo, costumes, indumentária, alimentos […] É uma curiosidade ampla e livre, sem compasso, sem barras, nem limites […] Afirma o que sabe, ouviu ou reparou”
Na sua passagem pela Paraíba, Henry Koster descreveu a sua visita a um engenho situado nas terras do atual município de Cruz do Espírito Santo:
“Levava cartas para o proprietário, membro da família Cavalcanti, e Capitão-Mor na província da Paraíba. Fui por ele recebido de maneira afetuosa. A residência é no estilo usual da região, tendo apenas o pavimento térreo e sem forro, mostrando as vigas e telhas […] A principal divisão da casa é em dois grandes quartos, com muitas portas e janelas. Em um, várias redes e um sofá. Noutro, a longa mesa […] e poucas cadeiras. O solo era revestido de tijolos e as portas e postigos não tinham pintura.
Por ceia puseram diante de mim carne-seca e farinha de mandioca, tornada em papa, que chamam pirão e também biscoitos-duros (bolachas) e vinho tinto. Não era suficientemente brasileiro para comer o pirão, preferindo a bolacha e a carne, o que estarreceu o anfitrião […] Derredor dele havia vários rapazes que o serviam mas, nem sua mulher, nem qualquer das filhas, apareceu […] Os doces, servidos depois, eram como sempre, deliciosos, conforme o hábito das famílias dessa ordem. O rico homem brasileiro tem tanto orgulho dos seus doces quanto o cidadão inglês de sua mesa ou dos seus vinhos.
Passamos, depois, para um aposento mais amplo e cada qual escolheu uma rede, das muitas que havia na sala, e ficamos conversando e balançando meio adormecido. O Capitão-Mor deixa raramente o seu engenho para ir ao Recife ou Paraíba, vivendo, como os outros de sua classe no Brasil, num estado de vida feudal […] O dono da casa vestia uma camisa, ceroulas e um longo roupão, chamado ‘chambre’, e um par de chinelas. É a indumentária típica de pessoas que nada têm a fazer. Quando um brasileiro começa a usar um desses ‘chambres’ têm-no logo na conta de importante e lhe dedicam, subsequentemente, muito respeito”
A capital da Paraíba, em outubro de 1810, foi objeto da observação e da narrativa de Henry Koster:
A cidade da Paraíba (lugares de menos população nesse país gozam desse predicamento) tem aproximadamente dois a três mil habitantes, compreendendo a parte baixa. Há vários indícios de que fora mais importante que atualmente […] A principal rua é pavimentada com grandes pedras mas devia ser reparada. As residências têm geralmente um andar, servindo o térreo para loja. Algumas delas possuem janelas com vidro, melhoramento há pouco tempo introduzido no Recife.
O convento dos Jesuítas é utilizado como palácio do Governador e o Ouvidor tem aí também sua repartição e residência. A igreja do convento fica ao centro e tem duas alas. Os conventos das Ordens Franciscana, Carmelita e Beneditina são amplos edifícios quase desabitados. O primeiro tem quatro ou cinco frades, o segundo dois e o terceiro apenas um. Além destes, a cidade possui seis igrejas.
As fontes públicas na Paraíba foram as únicas obras desse gênero que encontrei em toda a extensão da costa por mim visitada. Uma foi construída, creio, por Amaro Joaquim, Governador recente, tem várias bicas e é muito bonita. A outra que se está fazendo é bem maior. A fiscalização das obras públicas era a melhor ocupação do Governador. Fomos visitar esse cavalheiro no dia seguinte a nossa chegada […] A paisagem vista das janelas (do palácio do Governador) é uma linda visão peculiar ao Brasil. Vastos e verdes bosques, bordados por uma fila de colinas, irrigados pelos vários canais que dividem o rio, com suas casinhas brancas, semeadas nas margens, outras nas eminências, meio ocultas pelas árvores soberbas.
As razões para o fraco comércio existente, na época, na capital da Paraíba foram analisadas por Koster:
O comércio na Paraíba é pouco considerável não obstante o rio permitir que navios de 150 toneladas transponham a barra […] Existe a regular alfândega, raramente aberta. Paraíba está fora da estrada que vem do Sertão a Recife […] quer dizer, está arredada do caminho para as cidades situadas no litoral, para o norte. Os habitantes do Sertão, do interior, vão mais ao Recife por este apresentar pronto mercado aos seus produtos. O porto do Recife recebe navios maiores, oferecendo para embarque e desembarque de mercadorias, consequentemente, obtém a preferência.
Câmara Cascudo explica que a palavra “sertão” utilizada por Koster é empregada de “maneira indefinida, não somente significando o interior do país mas, às vezes, grande parte da costa cuja população é parca”.
Henry Koster também relatou episódios pitorescos da vida da capital da Paraíba, como foi um caso ocorrido durante o governo de Amaro Joaquim Raposo de Albuquerque (1805 – 1809). Conforme a narrativa de Koster, “prevalecia uma tradição de pessoas passearem à noite pela cidade, com imensos capotes e crepe no rosto, ocultando tudo, e se entregarem a práticas irregulares” que, hoje, poderiam ser caracterizadas como assédio sexual. O governador deu ordens para que a polícia prendesse quem encontrasse naquela situação. No relato de Koster:
“A ordem foi executada e, no dia seguinte, encontrava-se no quartel um dos principais moradores […] O homem fora finalmente preso. Amaro Joaquim queria executá-lo, mas percebendo as dificuldades criadas pela família que intercedia, mandou que o açoitassem […] E, castigado dessa maneira, depois de haver permanecido muito tempo na prisão, foi desterrado, por toda vida, para Angola. A cidade da Paraíba desfrutou a tranquilidade e os bons efeitos da rigorosa administração de Amaro Joaquim”.
Mamanguape foi outra povoação paraibana no curso da jornada de Koster:
“Jantei, no outro dia, na povoação de Mamanguape, situada á margem de um rio seco. É um lugar florescente. Essas povoações, mais novas que as outras, são constituídas por uma única e longa rua ao correr da estrada. […] O rio é escasso elemento de vantagem para o povoado, mas o lugar é convenientemente escolhido, entre Goiana e Rio Grande, como um quartel-general para os mascates, homens úteis, industriosos e, no país, geralmente probos. Eles partem para suas excursões diárias e podem voltar para dormir à noite […] A estrada de Goiana a Mamanguape é o grande caminho do Sertão”.
Com a publicação do livro de Henry Koster, o historiador Robert Southey “utiliza-o abundantemente”, conforme escreveu Câmara Cascudo, no terceiro volume da sua “História do Brasil”, no qual aparecem algumas informações sobre a Paraíba. É um fato inquestionável que Southey nunca esteve no Brasil, ao contrário do que, incorretamente, afirmou Archimedes Cavalcanti na sua obra “A Cidade de Parahyba na Época da Independência” que incluiu o historiador inglês entre os “visitantes ilustres” que passaram pelas terras paraibanas.
Depois da publicação de “Travels in Brazil”, Henry Koster não permaneceu muito tempo na Inglaterra, porque, em 1817, já estava de volta a Pernambuco, tendo presenciado a insurreição que rebentou naquele ano no Nordeste brasileiro. Koster, em 1810, no início das suas viagens pelas capitanias do norte, chegou a se encontrar, em Goiana, com o naturalista Arruda Câmara que é considerado um dos ideólogos do movimento revoltoso de 1817. Koster chegou a incluir como anexo ao seu livro “Travels in Brazil” resumos, traduzidos para o inglês, de dois estudos elaborados por Arruda Câmara. Henry Koster mantinha relações de amizade com lideranças da rebelião, como os padres João Ribeiro e Souza Tenório, que foram vítimas da revolta, o primeiro tendo se suicidado e o outro enforcado quando da repressão à revolução.
Koster integrou-se de tal forma à sociedade pernambucana, que teve o seu nome aportuguesado para Henrique da Costa. Para Câmara Cascudo, Henry Koster:
“Aí viveu vida de plantador de cana, deletrando com os padres, visitando os arredores, vendo o Mamulengo, conversando com os negros, dormindo de rede, bebendo cachaça para não constipar quando viajava debaixo da chuva, assistindo aos crepúsculos, fazendo sono perto das fogueiras […] Em superfície e profundeza, para a época, ninguém fixou a sociedade pernambucana, a sociedade dos fazendeiros do nordeste, a psicologia do senhor de engenho, o mundo escravo, como Henry Koster”.
“Muito estimado e considerado” Henry Koster, o Henrique da Costa, faleceu no Recife “em princípios de 1820”, conforme registrou o historiador pernambucano Alfredo de Carvalho.