Cinza

Com a morte da Rainha Elisabeth II do Reino Unido na última quarta-feira, 8, um grande debate se ascendeu nas redes sociais: Monarca exemplo de serviço público ou uma herança longeva de um colonialismo genocida? Como tudo na vida nada é tão simples. Nada é “preto” ou “branco”. A vida e os seres humanos são cinzentos, cheios de nossas contradições e idiossincrasias.

Além de nossa natureza indissociavelmente ambígua, outro aspecto deve ser firmemente analisado, especialmente no caso como a de uma monarca que reinou por 70 anos: o tempo. Acredito que existam pouquíssimas pessoas, hoje, que se lembrem de um mundo sem “A Rainha da Inglaterra”. Hoje o tempo voa e nem nós que já pegamos o bonde da tecnologia andando, que observamos de perto cada nova mudança na sociedade, conseguimos nos ater ao passo do tempo.

Fonte: Foto VATICAN NEWS

Uma figura (uma das inúmeras contemporâneas à monarca britânica), Getúlio Vargas, não pode deixar de ser citado como uma dessas figuras, no mínimo ambíguas. “Pai dos Pobres”, “Criador da CLT” e tantos outros títulos, era, incontestavelmente, um ditador. A consolidação das Leis do Trabalho, considerada por muitos como um instrumento de valor ímpar para os trabalhadores, pode ter sido um tampão oferecido pelo governo, aliado às elites, para que os trabalhadores não buscassem mais direitos.

Tortura, censura e tantas outras práticas eram igualmente comuns no governo varguista como nos Estados fascistas de seu tempo, como os de Perón, Franco, Mussolini e, por que não, Hitler. Ariano Suassuna lembrava constantemente que vivera sob duas ditaduras, a do Estado Novo, de Vargas, e a Ditadura Militar de 1964 a1985. Talvez por ser um tempo em que proliferavam no mundo Estados Fascistas, ou porque os “comunistas” eram inimigos comuns da situação e da oposição, tendemos a esquecer do “Estado Novo” como um período ditatorial.

Fonte:Foto ;Memorial da Democracia

Estou dizendo que a Rainha Elisabeth II era uma ditadora? Não estou dizendo que não. O que defendo é que todos os fatos sejam abordados, por mais doloridos que sejam. O colonialismo na África ainda tem feridas abertas, países foram criados sem respeitar tradições e territórios ancestrais e guerras civis ainda assolam o continente como herança disso. Contudo, ao observarmos do ponto de vista metropolitano, a permanência do Reino Unido como um ator relevante no sistema internacional em pleno século 21 se deve enormemente à sua chefe de Estado. Outras potencias imperiais tomaram-se membros secundários nas dinâmicas europeias, e ainda mais irrelevantes nas dinâmicas globais como um todo.

Espanha e Portugal são os exemplos que mais se destacam. Outrora dividiram o mundo entre si e acumularam terras em quantidade inimaginável para qualquer imperador romano, russo ou mongol. A prata da Espanha e o ouro de Portugal foram responsáveis por abalar a economia europeia e financiar a revolução industrial. Hoje passam pouco mais de balneários de veraneio para seus vizinhos mais ricos ao norte.

Um exemplo que, para mim é extremamente emblemático, é o de John Kenedy. O mesmo presidente americano que pôs fim nas leis de segregação racial de seu país foi o que financiou a ditadura militar no Brasil. Seria um simples caso de “Em tempo de farinha pouca, meu pirão primeiro”? Talvez por ingenuidade minha, ou, quem sabe, uma certa afeição à Realpolitik, vejo muitos desses exemplos não como monstros, mas como seres humanos que fizeram o que fizeram por serem sujeitos de seu tempo e reféns das informações e das mentalidades de sua época.

Muito cedo na faculdade aprendi o conceito de anacronismo, essa mania que nós temos de olhar o passado com os olhos do presente. Aprendi que para se analisar o passado precisamos fazê-lo com os olhos de seus contemporâneos. Não é fácil. É revoltante, indigesto e ofensivo. Seriam os escravocratas, os bandeirantes os monstros sanguinários que roubavam de suas terras e usurpavam as culturas de povos inteiros ou seriam apenas “vítimas” da sociedade em que viviam a qual os fazia enxergar o mundo como o faziam?

Acredito que o mais chocante sobre o ser humano é a sua capacidade do inimaginável. Das mais belas sinfonias aos mais horrendos massacres, não foram deuses nem monstros que os fizeram, foram humanos como eu e você. O que, me traz de volta ao ponto de que nós, humanos, não somos “pretos” ou “brancos” como o símbolo do Taoismo, somos um equilíbrio perfeito entre positivo e negativo, e nossos mais puros pensamentos e atos guardam em si algo de sombrio, da mesma forma que a sombra que reside em todos nós tem uma luz dentro de si.

 

O ditado diz que a expectativa é a mãe da decepção não pode deixar de ser relembrado aqui. Esperarmos de seres humanos perfeita congruência em seus atos, infalibilidade é como esperar que um limoeiro nos presenteie com fartas melancias. E isso se aplica ao ontem, ao hoje e ao amanhã. Aproveito, por fim, para lembrar aos leitores que nem nós, seres humanos, nem nossas obras são capazes da perfeição. Como tantos líderes de ontem e hoje cometem seus erros e acertos, como tantos possuem traços que nos agradam e nos repelem, lembremos que a perfeição não foi concedida aos seres humanos.

É inevitável tratar do tema das eleições que se aproximam tão velozmente, e ao mesmo tempo não suficientemente depressa, que não busquemos candidatos com antecedentes perfeitos, ou propostas impecáveis, mas aqueles que tem, dentro de si, o ímpeto da mudança e a consciência do que precisa ser mudado.

Deus salve a Rainha e vida longa ao Rei

 

 

 

 

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