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João Pessoa

Palavras

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Curioso que o ser humano desde sempre foi capaz de produzir imagens, inclusive, desde que nascemos e nos é dado um lápis e papel (às vezes uma parede) produzimos imagens, contudo, a escrita é algo bem posterior. Milhares de anos se passaram até que o ser humano fosse capaz de, através de símbolos gravados em tabletes de argila, pedra, ou peles de animais, expressar o que sentia e pensava, não mais através de imagens, mas de símbolos. Comigo não foi diferente, lembro-me do meu processo de alfabetização, de decifrar as letras, formar sílabas e palavras. Era um estudante extremamente preguiçoso e minha caligrafia é sofrível até hoje.

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A leitura foi um prazer descoberto apenas na adolescência e por muitos anos negligenciado devido à faculdade. Acho fascinante a história de crianças que aprenderam sozinhas a ler ou que, desde muito cedo, se apegam a seus livros. Nesse quesito sempre fui muito medíocre. Tudo no tempo e da forma mais ordinária possível. Contudo, a preguiça de ler, as tortas letras ao escrever, descobri anos depois, se davam por completo tédio. A escola foi um período extremamente tedioso, como a faculdade também foi. Não poderia ser diferente. Sempre me senti “subutilizado”.

Entendo, hoje, que o que acontecia, e ainda acontece, com minha mente é que ela se acelera demais para as letras, ainda mais em seus estágios iniciais. Contudo, meus ouvidos estavam sempre à postos. Um velhinho em corpo de criança, me fascinava ouvir as fofocas históricas da família contadas nas surdinas da cozinha enquanto o jantar era preparado, na calçada enquanto as outras crianças brincavam. Tenho memórias sublimes de me deitar no colo de minha mãe e ouvir as vibrações da fala em seu peito, como se as ouvisse antes mesmo de chegarem à boca.

Acredito que foram em momentos de extremo carinho que as palavras me foram apresentadas. Sempre ouvindo as fofocas das minhas tias, as histórias do meu avô, as memórias de minha mãe. Não só em relação aos alimentos se restringe a máxima de que somos o que consumimos. Eu sempre vivi de histórias. Causos contados e recontados, me formaram com um vocabulário antigo, de outros lugares.

Seria uma “falta de estilo” falar que algo está na moda ao invés de “está muito em gosto”. Por que se despedir com um adeus se posso falar “até um dia feliz como o de hoje”? O que são meros sapatos ante novos “borzeguins”? Antes de conhecer as letras, as sílabas, eu conhecia as palavras e as histórias. Desde muito pequeno sabia de coisas que muitos morreram sem conhecer. Viajei em tropas de burro, caminhões pré-históricos e poéticas marias-fumaça. Vesti linho bem passado, cosi elaborados enxovais bordados, pulei em plumas de algodão que esvoaçavam ao meu redor. Meu ser se formou com palavras e histórias, meu sono era embalado por dezenas de vozes e eu sempre fui abraçado por braços da imaginação.

Hoje, com olhos do futuro, vejo que a escola sempre foi uma tragédia anunciada, aliás, todas as tragédias se anunciaram com estandartes e arautos ruidosos, mas o que poderia ser feito a não ser enfrentá-las? Como sou feito de histórias, gosto particularmente, da singela história do patinho feio. Não que em algum momento eu tenha me sentido um patinho feio, mas nunca foi fácil ser um cisne rodeado de marrecos.

Uma das cenas que me lembro desses anos foi em uma aula, de português suponho, na terceira ou quarta série, em que a professora indagara o que era um “mausoléu”, e eu era única daquelas quarenta e tantas crianças que sabia o significado da palavra. Me enchi de orgulho e ao mesmo tempo de pavor ao perceber que eu estava só naquela canoa furada. E de canoa furada em canoa furada e de a barco afundando em diante eu fui navegando na vida. Ganhava de lavada os concursos de poesia, as professoras usavam minhas respostas como exemplo, mas os anos foram se passando e parei de escrever poesias, as letras se misturaram aos números e eu passei as próximas duas décadas cumprindo listas de atividades.

Química, física, matemática, no colégio; na faculdade, as sofríveis disciplinas de processo não sei das quantas, direito não se de quê… depois de formado foram anos decorando quantos botões tinham as ceroulas de Dom João VI, até que eu descobri (graças à terapia) que eu tinha o direito de não passar todos os meus dias ou estudando ou me sentindo culpado por não estudar. Nada pior para a felicidade que as obrigações. Voltei aos meus livros, ressuscitei a antiga paixão por arte, mas ultimamente cresceu um vazio em mim.

Sempre senti uma frustração por não dominar nenhuma das “belas artes”, meus desenhos pecam pela total falta de profundidade, e nunca consegui sair das paisagens curtas ou das naturezas mortas da Silva; apesar de entender bem as partituras, meus dedos têm a tendência a não conseguirem se comunicar com o cérebro na hora de executar as notas, e minha voz não é das mais melodiosas. Arquitetura ainda foi uma outra tentativa, mas percebi que jamais poderia ser um Palladio ou Niemeyer. Sempre me senti “andando na água”, a intenção da locomoção estava ali, mas a forma era incorreta. Ainda não tinha achado “minha” forma de arte e isso me frustrava terrivelmente.

A necessidade da expressão vinha crescendo e crescendo e eu não sabia como dar vazão a ela até que o óbvio me atingiu: as palavras. Nunca fui muito hábil com o pincel ou com as partituras, mas brinco com as palavras como poucos. Não digo isso por falta de modéstia, afinal de contas levei quase 30 anos para acreditar no que diziam sobre as minhas letras. Nunca me apercebi de minhas habilidades, acredito que pela usualidade da escrita no nosso cotidiano ou, bem, por eu sempre ter sido assim. Ninguém, afinal de contas, considera a alfabetização como uma etapa de formação artística.

Na escola, os elogios me pareciam vazios. É obvio que eu escrevia melhor que muitos de meus colegas, eles chegavam em casa e iam ver seus desenhos, e eu, meus documentários. Na faculdade de direito, o lar da mediocridade humana, a escrita é uniformizada na sua pomposidade, latinismos e total e completa falta de abertura a alguma autenticidade. Ossos do ofício. Não se pode brincar com as palavras quando cada termo importa. Vejam só a ironia das coisas, um dos ofícios em que as palavras são mais importantes, também é o que as engaiola. Mas lá também tive minha cota de elogios, e da mesma forma os ignorei. Claro que tinha “estilo”, eu nunca fui um avestruz jurídico que enfia sua cabeça no mundo das leis. Estudava o mínimo possível das matérias e me esbaldava fora da faculdade, vejam só, estudando línguas estrangeiras.

Como um multi-instrumentista, me deliciava em aprender novas línguas, me deliciava até em não aprender. O alfabeto cirílico do russo e o completo caos da gramática alemã são como feras indomadas que talvez, um dia, as domine. Sempre elas, as palavras correndo diante de meus olhos, me enebriando eu as conduzindo como um maestro rege a sua orquestra… Como nunca percebi?

Antes do fatídico dia em que tivemos que discutir se uma vaca possuía responsabilidade civil ao cair de um barranco sobre um carro, e eu decretar que jamais poria meus pés em um tribunal, me lembro de tentar tirar minhas dúvidas com os professores, ou citar exemplos que geravam, em quem me ouvia, a expressão de que estavam ouvindo uma língua exótica. Citava exemplos tirados das obras de Victor Hugo e me chocava que meus colegas (a até muitos professores) não conheciam o que eu considerava o “básico” de cultura universal. Até hoje eu não consigo aceitar que exista um ser humano que sinta prazer em ler a respeito da responsabilidade penal dos sócios de uma empresa, e jamais ter lido O Corcunda de Notre Dame. É claro que é importante, útil e tal…, mas eu não sou um homem de coisas úteis, eu sou um homem de coisas belas, frívolas e deliciosas.

Acredito que é nessa frivolidade que mora o meu talento. Deus sabe que eu consegui escrever por quarenta páginas a respeito de genocídio e ainda ouvir que apesar da gravidade do tema a minha escrita era leve e agradável. Mas me explico, não vivo descolado da realidade, muito pelo contrário, sou tão realista que não consigo levar nada a sério. Como levar a sério o atual presidente da República falando seus impropérios cotidianos se há poucas décadas agentes do governo dos Estados Unidos da América eram enviados ao Brasil para ensinar a nossos bons homens como torturar devidamente um estudante? E como considerar a Ditadura Militar o pior período de nossa História ante 300 anos de escravidão?… e assim se encadeia a história humana. Como considerar algo sério ou importante ante tudo? Nessa comparação eterna de desgraças passadas, nessa enxurrada, cada dia maior, das misérias cotidianas como levar algo a sério? Tudo é mais sério e ao mesmo tempo nada é tão sério quanto.

O fato é que eu, finalmente, achei meu ofício, minha arte. Ainda não sei bem o que fazer com tal habilidade, não sei muito bem como utilizá-la nem para quê, mas se alguém precisar de belas palavras as minhas cá estão à disposição para o uso e o fruto. E obrigado a todos que se interessaram por minhas palavras, vocês foram os olhos e os ouvidos que se dispuseram a ver e ouvir; e sem vocês tudo seria um escuro silencioso.

Como bobo da corte, único se atreve a dizer a verdade ao rei, me despeço como um palhaço, que sem seu respeitável público, não conseguiria trazer sentido algum a esse circo que é a vida e o mundo.

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