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Massacres Administrativos

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Na última sexta feira (27), no que parecia ser um auspicioso término de semana, me deparei com a notícia de um pai de família, esquizofrênico, morto em um camburão da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe. A ironia da coisa é que estava exatamente na capa do caderno “Cotidiano” da Folha de São Paulo. O laudo do IML (Instituto Médico Legal) de Sergipe apontou que Genivaldo de Jesus Santos sofreu insuficiência respiratória aguda provocada por asfixia mecânica.

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O Código de Trânsito Brasileiro não exige a prisão sequer em caso de homicídio, sendo exigido do condutor do veículo apenas a prestação de socorro à vítima. Contudo, Genivaldo foi preso por dois agentes da PRF, alegadamente, pela falta de uso de capacete ao conduzir sua motocicleta. Os policiais relatam que Genivaldo se negou a cumprir as ordens de levantar a camisa e colocar as mãos na cabeça “levantando o nível de suspeita da equipe”.

Acredito que a essa altura os leitores já estejam familiarizados com o ocorrido, tendo, talvez, até visto as imagens da ação que foi filmada por pessoas no local que protestavam contra a truculência da força policial. O fato é que Genivaldo foi colocado de forma violenta na traseira da viatura e, em seguida, bombas de gás foram atiradas dentro do veículo.

Acredito que poucas pessoas saibam, mas no ano de 2017 me dediquei extensivamente à pesquisa dos métodos usados na Alemanha Nazista para o genocídio de judeus, homossexuais, deficientes físicos e mentais, comunistas, ciganos e tantos outros “indesejados”. À época, estava sendo votada, na Câmara dos Deputados, a redução da maioridade penal. Alguns aspectos da proposta de emenda constitucional me geraram revolta desde o início, como a aparente cegueira parlamentar ante a violência contumaz contra jovens, em sua enorme maioria negros, já perpetrada historicamente pelo Estado Brasileiro, bem como o absurdo da violação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, contudo, o que me chamou mais atenção foi o ódio presente nas falas de inúmeros parlamentares, que viam no encarceramento em massa de jovens vulneráveis não mais um problema para o sistema prisional ineficiente e cruel que possuímos, mas uma panaceia para os males do país.

Pareceu, a mim, impossível não observar as semelhanças entre o que se faz no Brasil e se fez na Alemanha de Hitler. Me aprofundei nos casos brasileiros e alemães com a finalidade de tentar entender o que motivava tamanha semelhança.

Meu maior aporte teórico para a pesquisa foi o conceito de “Banalidade do Mal” cunhado por Hannah Arendt, filósofa judia e alemã refugiada nos Estados Unidos. A filósofa foi convidada por uma revista americana para cobrir o que prometia ser o julgamento do século: o julgamento de Adolf Eichmann, burocrata da máquina nazista, em Jerusalém.

No livro “Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal”, Hannah Arendt conta como se chocou ao chegar no tribunal e ver uma criaturinha medíocre, com cara de bancário, encerrado em uma caixa de vidro e seguramente escoltado. Eichmann não tinha “cara” de vilão, contudo, era o responsável pela logística dos chamados “trens da morte” que levariam milhões de pessoas para as suas mortes prematuras.

Desde o início da pesquisa, o que me chocava é que o Estado Brasileiro não tem, formalmente, uma política de extermínio, contudo, todas as suas ações, sejam através de políticas públicas que impedem negros de ascenderem socialmente, terem acesso a serviços públicos, moradia digna, saúde, educação e, ainda, através da própria polícia e do sistema legal que parecem ter como meio e fim o extermínio da população negra e pobre.

“Talvez possamos chegar mais perto da questão se nos dermos conta de que por trás do conceito de Ato de Estado existe a teoria de raison d’état. Segundo essa teoria, as ações do Estado, que é responsável pela vida do país e também pelas leis vigorantes nele, não estão sujeitas às mesmas regras que os atos dos cidadãos do país. Assim como o domínio da lei, embora criado para eliminar a violência e a guerra de todos contra todos, sempre precise de instrumentos de violência para garantir sua própria existência, também um governo pode ser levado a cometer atos que são geralmente considerados crimes, a fim de garantir a sua própria sobrevivência e a sobrevivência da legalidade, as guerras são frequentemente justificadas nessas bases, mas atos criminosos de Estado não correm apenas no campo das relações internacionais, e a história das nações civilizadas conhece muitos exemplos disso […].

A raison d’état apela – corretamente ou não, dependendo do caso – para a necessidade, e os crimes de Estado cometidos em seu nome (que são inteiramente criminosos nos termos do sistema legal dominante no país em que ocorrem) são considerados medidas de emergência, concessões feitas às severidades da Realpolitik, a fim de preservar o poder e assim garantir a continuação da ordem legal como um todo. Num sistema político e legal normal, tais crimes ocorrem como uma exceção à regra e não estão sujeitos às penas legais […] porque a existência do Estado em si está em jogo, e nenhuma entidade política externa tem o direito de negar a um Estado sua existência ou de prescrever-lhe como preservá-la.” (p. 314)

Em nossa sociedade, explica a filósofa, através do sistema legal e da polícia, abrimos mão do “direito” de fazer justiça com as próprias mãos e consentimos esse direito ao Estado, que passa a ser o responsável, e único autorizado, a se valer da violência para manutenção da ordem social. A partir daí, a violência passa a ser um “mal necessário” ou “mal menor” que precisa ser utilizada contra aqueles que disturbam essa ordem. Contudo, “Podemos aplicar o mesmo princípio que é aplicado a um aparato governamental em que crime e violência são excepcionais a uma ordem política em que o crime é legal e constitui regra?” (p.315)

O Estado Brasileiro, há muito, transformou, na prática, a violência contra as populações vulneráveis em regra. Igualmente como ocorreu na Alemanha Nazista.

Entretanto, essa mesma afirmativa que é o Estado Brasileiro que é violento, que são suas políticas que são discriminatórias pode ser utilizada para, por exemplo, afastar a culpa dos dois policiais que assassinaram Genivaldo na traseira da viatura diante das câmeras. Inclusive, a defesa de muitos nazistas consistia nisso, que eram apenas pequenas engrenagens, parte de uma grande máquina estatal e que “não perceberam o que estavam fazendo”.

“Se o acusado se desculpa com base no fato de ter agido não como homem, mas como mero funcionário cujas funções podiam ter sido facilmente realizadas por outrem, isso equivale a um criminoso que apontasse para as estatísticas de crime – que determinou que tantos crimes por dia fossem cometidos em tal lugar -e declarasse que só fez o que era estatisticamente esperado, que foi um mero acidente ele ter feito o que fez e não outra pessoa, uma vez que, no fim das contas, alguém tinha de fazer aquilo.”(p312)

Acredito que o caso de Genivaldo nos cause várias ondas de choque, a primeira pelo fato em si, sua crueldade. A segunda por constatarmos que aqueles que o assassinaram não são psicopatas, loucos ou qualquer outra coisa, são homens comuns, com suas famílias e vidas comuns, assim como Adolf Eichmann, não são monstros, são homens comuns, e pior ainda, são funcionários públicos. Por fim, a onda que é mais forte, ao menos em mim, é ver como o mal foi, de fato, banalizado. O mal perdeu toda a sua conotação de “errado” ou “proibido”, tornou-se corriqueiro. O mais assustador em toda essa situação é que não há nada de desumano nela, ela é, infelizmente, o que há de mais humano.

Genivaldo, como tantos outros que são mortos em ações policiais, perdem a sua qualidade de “seres humanos” ante esses atores estatais, e são transformados em inimigos a serem combatido não importa o quê. É essa desumanização não dos carrascos, mas das vítimas, que faz com que essa cadeia interminável de violência se perdure. “A lei pressupõe que tenhamos uma humanidade em comum com aqueles que acusamos, julgamos e condenamos” (pp.273 e274) contudo há muito o Estado Brasileiro, as forças armadas, os agentes de polícia, os assassinos de Genivaldo perderam a capacidade de enxergar humanidade no outro, principalmente se esse “outro” tiver uma pele preta.

 

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