Dante Alighieri, descreve em sua Divina Comédia que, no inferno, os lugares mais quentes estão reservados àqueles, que em momentos de grande crise moral, mantêm a sua neutralidade. E é com esse dizer em mente que me porto, ou ao menos tento me portar: de forma menos neutra possível diante da vida.
Não precisamos tomar partido em todas as picuinhas cotidianas na vida, mas em momentos em que valores maiores estão em jogo, é fundamental juntarmos a nossa voz à multidão que grita. E aqui serei muito claro no que quero dizer. Muitas vezes meus pensamentos se voltam a como situações cotidianas podem nos trazer profundos ensinamentos, mas hoje direi com todas as quatro letras: VOTE
Ainda temos alguns dias para que ajustemos nossas pendências junto à justiça eleitoral, então eu clamo: vote! Se engana aquele que pensa que seu voto não tem importância, como também se engana aquele que pensa que seu voto é tão sacrossanto que não pode ser dado a um candidato menos que perfeito. Sejamos menos idealistas e mais realistas: o candidato perfeito não existe. Sempre haverá uma discordância quanto ao modo, quanto ao conteúdo, partido ou alianças, mas é disso que é feita a democracia. Do comum. Nem do “meu”, nem do “seu”, a democracia é o governo no qual se ouve e se respeita a voz do “nosso”.
A democracia não é o governo dos mais aptos, isso se chama Aristocracia (o governo dos melhores), a democracia é o governo representativo de um povo. Não elegemos os candidatos mais competentes, honestos ou justos, elegemos aqueles com quem mais temos em comum. E é assim que deve ser. Um governo democrático elege aqueles que mais se parecem com seu povo. E isso pode ser salutar ou assustador. Um governo corrupto, legitimamente eleito, não foi posto por um povo incólume. Elegemos os candidatos nos quais confiamos, aqueles que têm um modo de agir ou uma filosofia que se adequa ao que nós pensamos. São, afinal de contas, nossos representantes.
Um povo que desconsidera a importância da “res pública”, da coisa pública, elege políticos que têm o mesmo sentimento quanto à esta; políticos que tratam a coisa pública com descaso, chegando a tratar esta não como um bem coletivo de um povo, mas como se privada fosse. Sentem-se tão à vontade para se apossar do alheio, para desprezar o povo e a democracia, por saberem que ninguém está olhando. E a culpa de se sentirem assim, tão à vontade diante do errado, é nossa.
Políticos, num Estado Democrático de Direito, são escolhidos pelo seu povo. Não existe essa dicotomia na qual crescemos acostumados a ouvir, talvez por ser tão jovem a nossa democracia, na qual existem os políticos, monstros corruptos encastelados na Capital Federal, e nós, pobre povo, vítima destes malfeitores. Se o estereótipo do “político ladrão” perdura, é por culpa nossa, que neles votamos, ou pior, por nossa abstinência em votar. Fazemos tão pouco caso da política, do nosso dever e do nosso poder como eleitores que permitimos que estes fossem eleitos e reeleitos.
Outro dia ouvia na Voz do Brasil (sim, eu ouço A Voz do Brasil, leio jornal, e, aparentemente, vivo em 1950) a reclamação de um deputado que se queixava que, nas redes sociais, pessoas estavam montando uma base de dados que continha o endereço de todos os parlamentares na Capital Federal, com o intuito de possibilitar aos eleitores irem, pessoalmente, pressionar os parlamentares para aprovar ou rejeitar tais ou quais propostas legislativas. O parlamentar reclamava que isso punha em risco a privacidade e a segurança, sua e de sua família. Mal sabe o parlamentar que essa é uma prerrogativa dos cargos públicos: o medo do povo. No dia que os governantes não nos temerem mais, é o dia que a democracia fracassou em todos os seus aspectos.
O direito divino dos reis foi revogado e, hoje, até os monarcas sabem que suas cabeças permanecem em cima de seus pescoços só enquanto o seu povo assim desejar. Caminha predisse, séculos atrás, que, nesta terra, se plantando tudo dá. Já vimos “brotarem” em nossas terras reis, imperadores, presidentes e ditadores. De fato, tudo se deu. Mas há algum tempo plantamos, com um esforço monumental, uma frágil democracia, que nos últimos 30 anos cresce, floresce, as vezes murcha, mas ainda vive.
Como zelosos jardineiros, nós brasileiros, temos de podar alguns galhos dessa árvore que, por descuido nosso, adoeceu. É inconcebível que em pleno 2022 ainda vejamos parlamentares sendo eleitos com o mesmo descaso ou ridículo que se elegia o Rei dos Tolos; pessoas que se elegem pela sua fama, pelos seus discursos quixotescos em que bradavam a necessidade de se destruir inimigos imaginários. Quase como um espetáculo gladiatório em que feras eram trazidas para serem mortas em frente do povo, em 2018 vimos a luta contra os comunistas ressurgir da tumba. Mortinha da silva, mas levada de palanque em palanque tendo seu cadáver vilipendiado por energúmeno atrás de energúmeno. E essa malhação do Judas deve se repetir em 2022.
Outro monstro, esse o mais quixotesco de todos, foi uma quimera: a família tradicional brasileira e os bons costumes. Ao modo do monstro mitológico que possuía corpo de leão, rabo de serpente e uma terceira cabeça, essa de uma cabra que cuspia fogo, que saía das costelas da besta, a quimera eleitoral conservadora não fazia muito sentido e era dificílima de ser imaginada. Família tradicional brasileira? Qual? As descritas por Darcy Ribeiro em suas visitas aos povos indígenas? Mas essas eram tão variadas em seus costumes e formas. Ou seria algo mais idealizado, uma coisa mais José de Alencar? Nesse caso, a família tradicional brasileira teria por pai Peri, um Tarzan indestrutível e que falava igualzinho a Joaquim Nabuco. E o que falar dos bons costumes? Esses são mais difíceis de ver do que orelha de freira. Mas imaginemos quais seriam os costumes da tal família tradicional: seriam as amantes, os filhos em clínica de reabilitação, acidentes automobilísticos com vítimas fatais rapidamente encobertos por ágeis advogados, ou talvez algo ainda mais tradicional como os currais eleitorais ou o voto de cabresto?
Talvez eu esteja esperando racionalidade de quem não a tem, e esteja jogando minhas palavras ao vento. Deveria, então, me dirigir não àqueles meramente mal informados? Bem, então vamos aos argumentos. Seriam absurdos os gastos e rendimentos daqueles que constituem os poderes? Bem, primeiramente, devemos esclarecer que, realmente, a democracia é um sistema caro. São 513 deputados, 81 senadores, 11 juízes no Supremo Tribunal Federal e o presidente da república, e aliado a isso existem vices, suplentes, assessores, seguranças e toda uma equipe necessária. Isso só no âmbito federal. Sem falar nas eleições periódicas que demandam um sem fim de recursos. Mas infelizmente a alternativa a isso seria um governante absoluto. Não existiria a necessidade de eleições periódicas a manutenção de três distintos poderes… Bem, é verdade que o sistema parece funcionar bem na Arábia Saudita. Os cidadãos não pagam impostos e vivem muito bem assistidos pelo Estado, ou seria pelo Rei? Afinal de contas as contas estatais e da família real são a mesma coisa. Disputa por poder? Aqui e ali aparecem alguns príncipes mortos ou fugidos, talvez um jornalista esquartejado em um consulado, mas fora isso tudo parece correr bem. Mas em termos de gastos é uma coisa fantástica. Ou seria horrível? Ainda me confundo em analisar as contas públicas de um país em que não há diferença entre bens públicos e bens reais.
De qualquer maneira, ainda que você tenha votado pela volta da família real no referendo de 1993, ou ainda torcido pela liberação do porte de armas e pela pena de morte com a eleição do governo vigente. Não importa a sua fantasia preferida, se conto de fadas ou bangue-bangue, escolha seus candidatos, analise suas propostas e torne sua insatisfação, ou satisfação, em voto. O fundamental é fazermos nossas vozes serem ouvidas e jamais ficarmos imparciais diante de grandes crises morais.