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O Cinema Falado foi o culpado?

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Em 1934, na voz do cantor Francisco Alves, saía o disco com a gravação de “Não tem tradução”, um dos melhores sambas do gênio de Noel Rosa. Letra e música do Poeta da Vila Isabel, conforme o registro de João Máximo e Carlos Didier, os mais rigorosos biógrafos de Noel. Embora tivesse, na ocasião, apenas 23 anos, Noel Rosa já se tornara um atento e aguçado cronista dos fatos do cotidiano da sua época. “Não tem tradução” é um primoroso exemplo do olhar de Noel sobre o seu tempo.

“O Cinema Falado / É o grande culpado / Da transformação […] A gíria que nosso morro criou / Bem cedo a cidade aceitou e usou / Mais tarde o malandro deixou de sambar dando pinote / E só querendo dançar o fox-trot ! / Essa gente hoje em dia / Que tem a mania / Da exibição / Não se lembra que o samba / Não tem tradução em francês / Tudo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia / É brasileiro, já passou de português / Amor, lá no morro é amor pra chuchu / As rimas do samba não são ‘I love you’ / E esse negócio de ‘alô’, ‘alô boy, ‘alô Johnny’ / Só pode ser conversa de telefone”.

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Embora os ritmos estrangeiros, como o fox-trot citado em “Não tem tradução”, já estivessem sendo comumente adotados nos bailes do País e as expressões inglesas fossem de uso corrente no futebol (penalty, corner, off-side, foul, team, goalkeeper, entre outras), Noel Rosa relatava na letra do seu antológico samba as modificações que estavam se dando na língua coloquial da população por influência do “cinema falado” que, cinco anos antes, havia chegado ao Brasil.

 

Ainda nos últimos anos do século 19, a novidadeira rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, recebera uma engenhoca que projetava sequências animadas de imagens e que fora construída pelos irmãos franceses Lumière. Os cariocas eram atraídos pela curiosidade da exibição daquela inusitada máquina de projeção, ainda rudimentar, na qual as imagens se moviam como na vida real.

Na primeira década do século 20, os equipamentos de projeção já haviam se aperfeiçoado e as pessoas não eram mais atraídas pela curiosidade do invento inovador. Agora, eram os enredos dos “filmes” que levavam os espectadores, já cativos do cinema, às salas de projeção que haviam se instalado ao longo da recém-inaugurada Avenida Central (futura Rio Branco), marco da reforma urbanística na área central da então capital do País e que fora executada pelo Prefeito Pereira Passos por determinação do Presidente Rodrigues Alves. No início dos anos 1920, apenas o espaço conhecido como Cinelândia, localizado em uma das extremidades da Avenida Rio Branco, concentrava seis cinemas.

Da mesma forma que ocorreu no Rio de Janeiro, as salas de exibição de filmes, os Cinemas ou Cines, se espalharam por todo o País. Em 1928, a cidade da Parahyba contava com quatro salas de exibição da empresa Einar Svendsen & C.: o Cinema-Theatro Rio Branco, o Cinema Filippéa, o Cinema Popular e o Cinema São João. Pela programação dos filmes que eram exibidos pode-se deduzir que nomes de atores norte-americanos como Tom Mix, Jack Dougherty, Betty Jewel e Gary Cooper já eram, naquele tempo, familiares aos paraibanos.

Embora os filmes da época não tivessem som, eram mudos, como se dizia, o ambiente nos cinemas não era silencioso. Nas salas de exibição propriamente ditas, um pianista ou um pequeno grupo musical tentava criar uma “trilha sonora” para o que aparecia na tela, sincronizando o andamento das músicas que eram tocadas com a variedade das cenas exibidas. Era uma tarefa dificílima.

Nas salas de espera dos cinemas também havia música. No Rio de Janeiro, grandes músicos atraiam para o local os seus admiradores, muitos dos quais nem assistiam aos filmes, como era o caso do senador Ruy Barbosa que frequentava o Cine Odeon para ouvir Ernesto Nazareth se apresentar ao piano. A flauta de um quase menino Pixinguinha e o violoncelo de Villa-Lobos também participaram de grupos que tocavam em salas de espera dos cinemas.

No dia 20 de junho de 1929, um acontecimento mudaria tudo isso. Após ampla divulgação pelos jornais, foi realizada a primeira exibição no Brasil do “cinema fallado – o film todo musicado, todo cantado, todo syncronizado e em parte dialogado”, conforme apregoava o anúncio do evento. A película “Broadway-Melody”, que foi exibida no Palacio Theatro, anunciava para o País os novos rumos que o cinema tomaria a partir daí, em decorrência da inovação tecnológica que fora incorporada na projeção das películas e que acarretaria reflexos indiscutíveis na cultura mundial.

Cinco anos depois da exibição de “Broadway-Melody”, as influências do “cinema falado” no País já eram perceptíveis e foram registradas por Noel Rosa em “Não tem tradução”. Mas, apesar da crítica contida no seu samba, o Poeta da Vila logo aderiu às inovações cinematográficas. Em 1936, já com os filmes falados sendo produzidos no Brasil, Noel Rosa colocaria duas músicas no filme “Alô, alô Carnaval”, uma delas era uma obra-prima: “Pierrô Apaixonado” (parceria com o sambista e pintor Heitor dos Prazeres). No mesmo ano, o filme “Cidade Mulher”, do diretor Humberto Mauro, segundo José Ramos Tinhorão, “marcava para Noel uma prioridade histórica: o de primeiro compositor de músicas de encomenda para o cinema”. Noel compôs seis músicas especialmente para o filme. Infelizmente, a sua morte prematura no ano seguinte, aos 26 anos de idade, encerraria, com “Cidade Mulher”, a produção do Poeta da Vila para o “cinema falado”.

Mas, nem todos aceitaram as inovações trazidas pelo cinema falado, a começar por um dos gênios do cinema mudo, Charles Chaplin, que defendia que o cinema era uma arte essencialmente silenciosa. Somente, em 1940, muitos anos após os primeiros filmes falados, Chaplin falaria em um filme (“O Grande Ditador”). No Brasil, quase uma década e meia depois da chegada do cinema falado, ainda havia obstinados defensores do cinema mudo, como um jornalista que escrevia no diário carioca “A Manhã” que, nos anos de 1941 e 1942, fazia os seguintes comentários nos seus artigos para o jornal:

 

“A natureza do Cinema é a imagem. Ora, a imagem é fundamentalmente silenciosa como meio de expressão […] Eis por que o Cinema, arte da imagem, deve ser silencioso”.

“[…] transformação por que passou o Cinema, que a meu ver tirou à imagem o melhor do seu sentido: o silêncio, o ritmo interior, o valor da expressão muda, a realidade íntima do símbolo, a modéstia dos letreiros, para substituí-los pela falação, pelo desperdício da voz humana inútil […] O cinema falado é artisticamente uma impostura. Não cabe. Só o aceitamos quando, pela qualidade de sua imagem, ele é intimamente mudo”.

O nome do intransigente e renitente articulista defensor do cinema mudo: Vinícius de Moraes, que era então crítico de cinema em “A Manhã”. O cinema falado foi o tema de uma acirrada polêmica que Vinícius manteve pela imprensa, na época, com o escritor Ribeiro Couto e que envolveu destacados nomes da cultura do País, como Otávio de Faria, Paulo Emílio Sales Gomes, Aníbal Machado, Humberto Mauro e Otto Maria Carpeaux.

No decorrer dos anos, a utilização do som, nas suas diversas formas, incorporou-se de tal maneira ao cinema que até os antigos filmes silenciosos são, atualmente, exibidos com trilhas sonoras, como se elas reproduzissem a atuação dos pianistas e grupos musicais que, no tempo do cinema mudo, tocavam nas salas de exibição.

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