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Resolução de ano novo

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42 peças de roupas e alguns chapéus. Linho importado, botões de madrepérola, fino algodão. Poderia ser o conteúdo de um bem recheado baú de enxoval de moça casadoira em tempos idos, mas foram as peças que descartei de meu armário. Quatro anos de formado, dois de pandemia. Conto nos dedos as vezes em que, nesse período, me pus em regalia completa com gravata de seda italiana e sapatos de verniz. As roupas não me servem mais. O peso aumentou. Talvez a postura tenha ficado um pouco mais vergada com a falta dos exercícios cotidianos. Me sobraram meia dúzia de calças e camisas e um chapéu de palha. Não os usava nem me serviam.

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Enquanto repetia o ritual, quase fúnebre, de me despedir das roupas que não me serviam mais, me dava conta de quantas vezes repeti esse processo. Fiquei grande demais para minhas roupas. Fiquei grande demais para minhas roupas vezes demais. Um processo um pouco mais azedo quando as peças são resultado de laborioso garimpo.

O orgulho de minha mãe em me ver crescer e engordar a olhos vistos, quando bebê, logo se transformaram em preocupação. Paladar seletivo demais, comida “errada”, conselhos demais, avisos demais, médicos demais, nutricionistas demais, exercícios demais. Distúrbios alimentares demais.

Ser a criança que come doces demais numa festa ou o adolescente que sai para lanchar com os amigos nunca me foi permitido à rédea solta. Temperança monástica para evitar a gula de monges. Contudo, aparentemente, pão e água formam uma dieta bastante calórica. Nunca parei de crescer. Logo as camisas não abotoavam mais e as calças me prendiam a respiração.

Sendo a humildade uma das regras primordiais das ordens monacais, a cena clássica do filho que que cresce e fica com roupas e sapatos pequenos tinha uma gravidade um tanto maior para mim. Pela frequência necessária e pelos preços menos modestos das roupas que me serviam. Mas o diabo nunca descansa. A gula levou à vaidade. Como as roupas não me serviam, as poucas que cumpriam a função precisavam cumpri-la bem. A prática levando à perfeição, pespontos, aviamentos e ajustes me eram familiares desde muito cedo. E talvez aí é que tenha pisado no rabo da Hidra. A roupa passou a ser o personagem principal da epopeia de minha vida. (Me permitam um aparte cômico aqui: Se a epopeia de Eneias tornou-se a Eneida, a de Odisseu, a Odisseia… seria esse compilado de mitos e lendas de minha vida a Antonieta? Deixo o questionamento ao leitor)

Voltando um pouco ao assunto sério, com o passar dos anos e com o encurtamento de distâncias e aceleração do tempo trazido pela internet, vi que, não só eu, mas um grupo enorme de pessoas, no mundo inteiro, sentia isso. Nossos corpos eram constantemente restringidos e nós éramos forçados a caber nas roupas, não o contrário. Vidas inteiras se restringem a dietas para não aumentarmos nossos corpos, exercícios nos eram prescritos ainda que pudessem nos fazer mais mal do que bem. Descobri, assim, uma coisa chamada “gordofobia”, (que, como sempre, convido o leitor à pesquisa), uma aversão que a sociedade tem a nós, a mim. A indústria da moda nos força a sermos pequenos; estudos médicos nos tratam como doentes, testes clínicos e farmacêuticos ignoram nossa existência (da mesma forma ignora mulheres e pessoas não brancas que são excluídas de estudos médicos), somos ensinados nos acharmos, e achar aqueles com corpos como os nossos, feios, repulsivos, doentes, preguiçosos e desleixados.

Aliás, algumas palavras nos são assustadoras: gordo é uma delas. Para mim, apenas um fato, assim como alto, baixo, magro, careca… Particularmente, só acho um pouco deselegante o termo “obeso”, não por vaidade, mas por inacurácia do termo. A Organização Mundial da Saúde define obesidade como “acumulação anormal ou excessiva de gordura que apresente risco à saúde”. Curto e grosso. Mas me permitam a aplicação do método cartesiano aqui: não seria a “acumulação anormal ou excessiva de gordura que apresente risco à saúde” um efeito, um sintoma, e não uma doença em si? Alguns medicamentos ou tratamentos de saúde como uma simples pílula anticoncepcional podem acarretar isso, não? Distúrbios alimentares, condições psicológicas, e até mesmo a genética do indivíduo é de grande influência na nossa constituição corporal.

Permitam-me, ainda, uma comparação um pouco absurda. Imaginem que “coceira” fosse tratada da mesma forma que obesidade: “prurido cutâneo que leva o indivíduo a coçar-se incessantemente podendo acarretar lesões na pele”. Mas essa coceira é causada por uma alergia? Talvez uma urticária emocional? Urtiga numa volta por um bosque? Eu mesmo já precisei ser atendido com urgência quando um medicamento me deixou com sensibilidade à luz e me deixou o corpo coberto de bolhas e com uma coceira incessante. Em todas essas situações se busca a causa do sintoma e, se possível, o seu tratamento exato. Então por que o mesmo não ocorre com nós gordos? Genética, desequilíbrio hormonal, ou, como no caso de tantos, a completa incapacidade de se seguir mais uma dieta ou um plano de exercícios por total exaustão emocional depois de uma vida de abusos, nunca são aspectos levados em conta. Independente da causa, dieta e exercícios são, sempre, a panaceia desse mal.

Como curioso que sou, pesquisei o que pude a respeito de beleza, feiura, padrões de beleza, medicina… Aliás, meu objetivo quando fui convidado a tecer minhas linhas nesse espaço era o de abordar temas mais amenos, mas não menos profundos, falar-lhes de arte, bom gosto, manufatura, talvez me arriscar em traçados econômicos, mas a realidade se impõe e, às vezes, precisamos falar dos que nos rodeia. Então me aprofundarei em temas como a forma de nossos corpos em momentos vindouros. Não poderia jamais ignorar o que se passa na minha cabeça, na minha vida e no mundo.

Assim sendo, refletindo a mim e ao mundo, numa espécie de olhar de artista que absorve o seu mundo e o expressa em sua arte, encerro esse ano com o convite a essa observação artística. Observem que talvez os nossos grandes males sejam um reflexo desse mundo. Talvez nossos corpos, gostos, comportamentos, e até mesmo a nossas doenças e suas curas sejam um reflexo do mundo em que estamos.

Talvez por esse olhar que me diz que não há nada estanque no mundo, e também pela minha postura resignada diante da vida, já fui acusado, por um psicanalista, de estar “desassociando”, quando lhe disse que meu corpo era a minha casa, mas não eu, eu sou um ser imortal que existia antes desse corpo e continuarei existindo após ele. Não consigo me enxergar de forma diferente. Então, já há algum tempo, me proponho à observação de meu corpo, como observo o mundo, e ao invés de subjugá-lo à minha vontade, me comporto menos como médico, menos como esteta e mais como antropólogo. Observo. Observo minha família e meus genes, observo o mundo ao meu redor, observo a vida e vejo como ele se comporta e o que me diz. Talvez meu corpo seja como são os de todos aqueles de minha família. Em mim vejo minha mãe, nela meu avô e talvez sejamos assim há tempos.

Em meu último esforço, como sempre busco manter meu corpo o mais saudável possível, afinal de contas ainda temos um século juntos pela frente, me matriculei em uma academia (o que se provou surpreendentemente prazeroso) e fui à uma nutricionista. Diagnóstico: minha dieta, dada a devida licença poética, é boa. Apenas alguns ajustes. E agora? Dieta e exercícios em dia, e agora?

Agora que não busco mais nada, apenas absorvo o que me chega e venho me desafiando a, como um artista, a absorver o mundo e devolver a vida em forma de arte. Afinal de contas, se não estamos fazendo da vida uma obra de arte, o que estamos fazendo?

Agora a última reflexão do ano: quanto tempo e esforço você, caro leitor, não se pouparia, e quanta coisa de mais útil não poderia fazer, se parasse de lutar conta o seu corpo? Se suas roupas não servem mais em seu corpo, têm vários corpos por aí que adorariam elas. Não prometa perder peso esse ano, se prometa roupas novas. Não se prometa nunca mais a ser menos, se prometa a ser sempre mais.

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