Início dos anos 70, tempos blindados e sonhos lotéricos também na Miranorte, cidadezinha do atual Estado de Tocantins, onde Alemberg viveu parte de sua infância e guardou muitas histórias como esta que vamos contar.
Numa tarde de domingo, após a feijoada do meio-dia, na sala de visita de seu Luiz Torneiro, os amigos, reunidos, acompanhavam os jogos da Loteria Esportiva pelo País a fora. Na verdade era essa a maior diversão da semana.
Dona Iracema bem que se esforçava para dar de conta dos tira-gostos improvisados. Uns poucos aperitivos quentes e a festa enchiam todas as medidas, depois dos buchos cheios do feijão preto e da dobradinha do almoço.
Lá pelas cinco e meia, a maioria dos placares já atendiam ao cartão das apostas de Seu Luiz, que, eufórico, muito se alegrava na transmissão da partida principal: no Maracanã. Jogavam Flamengo e Fluminense. Excluídos dois vascaínos da roda, os outros sete torciam pelo rubro-negro da Gávea, opção cravada, sem sombra de dúvidas, no sonho dos treze pontos.
A noite se definia calorenta, apesar da ligeira brisa que entrava pela janela da sala abafada. Sofá e poltronas pareciam mais aquecedores do que um conforto, quando a soma dos pontos principiou a esfriar o sangue da turma na hipótese do sucesso integral dos palpites. Nove jogos completados e o gramado ficara pequeno para caber tanta expectativa.
Seu Luiz chamou um dos filhos e passou as instruções:
– Vá na venda e pegue, adiantado, três brahmas geladas. – Percebeu que denunciava a certeza na suada vitória, mas disfarçou, acrescentando: – Traga também duas latas de quitute, que as coisas vão melhorar mesmo.
Compadre Zé Pedro administrava a contabilização dos pontos, de ouvido ligado no receptor de válvulas, lápis e papel na mão. Outro resultado favorável, e a sorte se oferecia dadivosa.
Veio o material requisitado na bodega e a notícia se espalhava pela redondeza, arrebanhando os primeiros perus, que engrossaram o grupo e agitaram a casa. No meio do labacé apenas uma figura permanecia quieta, desconfiada, impaciente da sala para a cozinha. Dona Iracema parecia concentrada mais na devoção ao santo para o empurrãozinho que faltasse. Ainda assim, cuidou com zelo de esquentar as conservas numa vasta travessa, combinadas de tomates e farinha, que dessem para atender a todos.
Outros jogos se completavam e emoção grande estava do décimo primeiro ao décimo segundo. Houvesse saldo, teriam espocados os primeiros rojões. No entanto ouviam-se apenas os gritos estridentes da numerosa torcida. Restava aí tão só o garboso Fla X Flu. E tomem choro e gemidos.
Pelo visto, a fortuna sorriria naquela casa, naquela tarde. Daria Flamengo na cabeça, pois a partida pendia para seu término e o time garantia com facilidade o 2 x 1 do primeiro tempo.
Daí, generalizou a tensão, parecido como se os circunstantes sentissem a gravidade daquele momento. Por certo, cada qual se punha no lugar da família de Seu Luiz, em vias de grande transformação. Passaria de pobre a rico, num único golpe do destino. E escutaram, vindo de dentro do quarto, pungente a reza da Dona Iracema, devota venerável na frente do santuário. O locutor tremia a voz, como se vivesse, lá distante, o drama do pessoal. Mãos suadas. Atenção redobrada nos lances de pequena área. E o tempo cooperando.
43 minutos do segundo tempo. 44. 45, e os descontos. Nessa hora, uma falta na cabeça da grande área a favor do Fluminense. Barreira formada; derradeiro cartucho; escaramuça debaixo das traves; e o tricolor converte:
– Gooooooooooooool! – de dentro do quarto, a explosão de alegria da fiel companheira de Seu Luiz, estrondou cá na sala, braços aos céus, num gesto de sincero agradecimento.
A princípio, calculou-se ter a mãe da família desvairado, produto da frustração que de todos transparecia, isso para susto de Seu Luiz, que foi dizendo:
– Mas Iracema, o gol foi do time adversário, e nós perdemos os treze pontos. Por que essa manifestação de tanta alegria? – indagou receoso.
– Não é isso, não, Luiz. É que antonte faltou tempero em casa e com o dinheiro que me deste para fazer o jogo eu comprei foi os legumes e a perna de porco que vocês comeram, hoje, no almoço, homê.
(Do livro Cinema de Janela, Terceira Margem Editora, São Paulo, 2001).