Eu tinha 15 anos, e fui interna num colégio em Crato onde morei. Éramos 31 internas e todas jovens, alegres e peraltas, assim, como toda jovem deve ser. Nossa alvorada era às 5 horas da manhã para assistir a missa na Capela que ficava anexa ao internato. Depois, íamos ao refeitório na maior alegria para desjejum, em seguida, cada uma tomava o rumo das suas salas de aulas para mais um dia de aprendizado. Apesar da rigidez a nossa vida era alegre e cheia pequenas desobediências que custava um longo e belo sermão da Irmã Maria, freira responsável pelas internas, e algo mais grave o sermão era ministrado pela Madre Superiora.
Julieta, uma das internas, estava noiva e prestes a casar. Muito alegre e simpática um dia apareceu com um comportamento estranho, triste, cabisbaixo, deixou de interagir conosco e não parava de chorar. Levei um tempo para saber o que acontecera. Tirada do nosso convívio ficou sendo acompanhada e aconselhada pelas freiras. Tudo ficou no mais absoluto segredo, e, a moça continuava a chorar. Aquela tristeza, aquele choro me incomodava e eu tentava a todo custo saber o que poderia ser feito para solucionar tão sério problema que tirou da nossa animada colega o sorriso do rosto, a alegria do olhar e a paz dos seus dias.
O noivado de Julieta estava desfeito, o noivo tão amado não a queria mais, até aí não entendi o motivo de tanto desespero, além da rejeição. Sugeri que a amiga o esquecesse, e única fórmula seria arranjar um novo amor, foi nesse momento que o choro saiu fácil, disse não ser mais possível, estava condenada a seguir a carreira religiosa, apesar, da minha pouca idade tentei tirar dela o motivo maior de tão radical decisão e o que causara tanto desengano. Ela me confessou não ser mais virgem, como dizia no linguajar da época, ela se entregou ao noivo que depois de consumado o ato a acusou de frigidez, por isso, a rejeitou, e, ela se viu sem saída.
Fiquei surpresa e sem palavras, e não sabia o que fazer. A cabeça dela estava repleta de conceitos pecaminosos, de culpa, de medo e de muitas dúvidas. Entendi o motivo pelo qual ela me escolheu como ouvinte, isso mesmo, ela precisava de uma ouvinte e não de uma inquisidora. Sem falar, ouvi silenciosamente e atentamente toda a sua confissão. Na minha pouca experiência, sugeri calma, paciência e silêncio; não precisava mais ninguém saber dessa história, até porque não era o fim do mundo e que seguisse a vida, pois um dia alguém que gostasse dela de verdade iria entender e aceita-la.
Julieta enxugou as lágrimas, me agradeceu e saiu. Depois desse dia nunca mais a vi chorando, mas nunca mais a vi sorrindo e nem alegre. O ano terminou e saímos de férias. Eu fui transferida para Campina Grande. Durante dois anos não soube mais notícias da colega desolada. Numa férias eu estava em casa dos meus pais quando alguém me chamou no portão e para minha surpresa era Julieta que viera a Lavras com seu novo noivo para apanhar o batistério dele para o casamento; o rapaz era meu conterrâneo. Ela estava outra vez sorrindo, alegre e festiva; sem culpa, sem pecado e de esperança renovada. Conversamos, ela me apresentou o noivo, tomamos um café e na despedida me deu abraço demorado e apertado. Agradeceu-me e entrou no carro que sumiu no final da rua. Nunca mais soube notícias dela.
Em 1979, fui morar em um pensionato em campina Grande. A cidade era muito fria, chovia praticamente todos os dias e o sistema lá era bem diferente do internato. Éramos muitas e de todos os estados brasileiros, umas trabalhavam, outras estudavam e ninguém nos vigiava. Dividia o quarto com duas garotas de Sousa/PB. No quarto vizinho morava duas cearenses, assim como eu, uma de Cedro e a outra de Juazeiro do Norte que chamávamos carinhosamente de Dejé. De estatura baixa, pele branca, cabelos negro e grosso, feições grosseiras e muito conversadeira. Ela era o orgulho da família que com muito esforço custeava seus estudos na Paraíba.
Quando a conheci ela já cursava Farmácia e Bioquímica na FURNE (Fundação Regional do Nordeste). Uma jovem que vivia para estudar, não passeava, não namorava e nunca conheci seus amigos; se é que os tinha. Estava sempre sentada na sua cama com aqueles livros que mais parecia uma bíblia de tão grosso que era. Lembro bem dela quando dizia que a Cadeira de Farmacodinâmica e Farmacologia era muito importante para o curso. Com voz estridente e em tom alto, gargalhando entre uma conversa e outra nos falava da Rua Doutor Diniz, lugar onde moravam seus pais em Juazeiro e da vida agitada que era aquele lugar.
No ano seguinte fui morar em outro lugar e não mais tive notícias de Dejé. Anos depois, em 1985, fui a Juazeiro fazer um curso de final de semana e fiquei hospedada na famosa Rua Doutor Diniz, ao chegar lembrei que a colega de pensionato morava lá. Perguntei a dona da casa se ela conhecia alguém com esse nome, e de pronto soube que moravam em frente. Fiquei feliz em saber que poderia reencontra-la e fui até sua casa. Para minha surpresa encontrei a colega, mas não a mesma que conheci.
A casa era simples, ampla e bem organizada. Sentei-me na sala enquanto aguardava, quando Dejé me apareceu não a reconheci. Gorda, vestida como uma senhora, falava em tom baixo, não tinha mais aquela alegria e me falou sem empolgação da sua tão almejada profissão. Conversamos pouco tempo, porque, o papo não fluiu. Despedi-me e fui embora. Confesso que decepcionada e com uma pulga atrás da orelha. Algo aconteceu para uma mudança tão radical. Realmente, da água para o vinho.
Em meados de 2015, fui a Juazeiro e a empresa que procurava ficava na Rua Dr. Diniz, claro que me lembrei da amiga e da sua triste história. Perguntei a pessoa que me atendeu se a conheceu, ela disse que aquela empresa foi à casa dos pais de Dejé e com o falecimento deles seus irmãos venderam a casa e a internaram para sempre no Hospital Mental, onde faleceu pouco depois.

