
Nasci nos primeiros anos da década de 1960, no meu tempo quem era rico andava em burrico e quem era pobre andava pé. Presenciei sem entender a exploração e o abuso com que eram tratados os moradores dos sítios e os empregados das casas grandes e até das residências na cidade. Eram verdadeiras senzalas sem porta, sem ferrolho e sem tramela. A agricultura era o principal meio de subsistência no nosso município; com uma população densa as grandes propriedades contavam com mais de 40 moradores.

Em época de moagem a cozinha da casa grande era uma animação, uma verdadeira festa. O serviço começava com os primeiros raios de sol; as mulheres, moças, moçotas, molecotas e meninotas iniciavam o trabalho entre conversas, cantigas e risos. As mais fortes moíam o milho para fazer o pão, outra passava o café espalhando o aroma por toda casa, alpendre e terreiro, pois, já era hora de levar para os trabalhadores no engenho; e sem perder tempo se enchia o alguidar de arroz e a moça sentava no parapeito da cozinha escolhendo com muito cuidado e muito carinho. No canto onde ficava as cumbucas para lavagem de pratos, copos e panelas a velha e experiente cozinheira com um pano amarrado na cabeça amassava o alho, a pimenta do reino e misturava ao vinagre para temperar a carne. O almoço era servido cedo, afinal, o trabalho começava ainda na madrugada. No fogão se colocava mais lenha para apressar o almoço, uma moça nova de braços fortes abanava as brasas para o fogo aumentar, e tudo sob a supervisão da dona da casa.
Nas residências das pequenas cidades as famílias mais abastadas eram cheias de empregados, um para cada função, muitas mulheres na cozinha, outra para os serviços de casa, uma ama para cada criança, além das crianças que brincavam com os filhos do patrão e mais uma ou duas para fazer mandados, e tudo em troca de comida e de roupa. Na mesa sentava os donos da casa e seus filhos, os empregados esperavam os patrões saírem para se servirem na cozinha, e nem sempre a mesma comida tinham o direito de comer, inclusive as crianças que já sentiam na pele a discriminação, afinal, era tão criança quanto às outras, também comiam depois. As roupas que recebiam eram usadas, somente no final do ano recebiam um corte de tecido e um chinelo. Os ricos usavam linho e seda, sapatos de verniz e de couro fino, e os pobres vestiam chita e volta ao mundo e sandálias japonesas (Havaianas ou Dupé).
Direitos nenhum, na verdade só tinham deveres, trabalhar duro em troca da subsistência era o único direito que conheciam. A jornada de trabalho era de 24 horas e de domingo a domingo, sem folga, sem salário e sem férias. Na sua maioria moravam na casa do patrão, não passava da porta da cozinha, não se envolvia nas conversas dos donos da casa. Eu conheci algumas que viviam, literalmente no borralho, seu quarto ficava depois da cozinha, suas roupas eram de tecido cru, pés descalçados, cabelos desarrumados; penso que nem penteavam, aliás, as suas aparições eram tão raras que pouco se sabia da existência delas, todas se chamavam Maria e ainda apanhavam, não sei o motivo, talvez nem existisse, mas eram severamente castigadas. As crianças adotadas eram empregadas mirins, ainda na meninice eram impostas responsabilidades que elas não podiam assumir, além da pouca idade, o corpo era ineficiente para tais funções. Coitadas tinham o mesmo destino.
Hoje, quando escuto pessoas falando mal dos programas sociais, das aposentadorias e das poucas oportunidades concedidas aos menos favorecidos, alegando a falta de pessoas para trabalhar fico imaginando que essas pessoas não presenciaram, não leram e nem ouviram falar do tamanho sofrimento daqueles antigos trabalhadores que suaram e a deram a força dos seus braços para o enriquecimento de uma “elite” que sempre viveu do sofrimento do povo.
O trabalho transforma, dignifica e edifica, enquanto a exploração humilha, aliena e embrutece o homem.
A autora me deixou com nó na garganta e com os olhos lacrimejando ao ler esse texto.magnifico e de muita profundidade. Somente quem viveu e sofreu essas amarguras da vida pode entender.
PARABENS CRISTINA COUTO.
Parabens a Joao machado por ter em seu quadro de colunista pessoa de tão grande conhecimento.
Quanta emoção a escrita permite! Obrigada João e Cristina! Parabéns!