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As velhas ambições em Lima Barreto

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Devido à sua ambição e egoísmo, o homem faz da sua vida um verdadeiro naufrágio. (Texto Budista).

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O conto A Nova Califórnia de Lima Barreto narra fatos corriqueiros e pitorescos de uma pequena e pacata cidade do interior fluminense. A trama aconteceu em 1910, época em que o Rio de Janeiro ganhava a fama de grande capital sul-americana,   muita visibilidade, marcando um tempo importante na história urbana da cidade. Tomando a capital como exemplo as pequenas urbes, embora, acanhadas e de hábitos arcaicos tentavam imitá-la.  

Tudo transcorria na mais perfeita harmonia, até, que a presença de um desconhecido disseminou o vírus da curiosidade e tirou a tranquilidade dos habitantes da cidade de Tubiacanga. O sujeito era mesmo estranho, não se sabia de onde vinha e nem o que pretendia naquele fim de mundo.

O seu alcunho veio ao conhecimento da cidade através do agente dos Correios que lia na subscrita das muitas correspondências dirigidas a ele. Raimundo Flamel era seu nome. Estranho mesmo era a quantidade de cartas, revistas, livros e muitos pacotes a ele destinados e oriundos de todos os lugares do planeta. 

O bizarro forasteiro mudara os costumes e os valores dos moradores que eram habituados a uma vida simples e corriqueira.  Em Tubiacanga há anos não acontecia nada de novo, nenhum crime, nenhum roubo e nem furto ocorriam por lá. Portas e janelas eram usadas nas casas, porque, no Rio usava. O último crime acontecera há  anos e foi por ocasião das eleições municipais, quando um situacionista assassinou um oposicionista. Prática natural e até justificável naquele final de década.  

Um episódio novo alvoroçou a população. O misterioso homem contratou o único pedreiro da cidade para um serviço na sua afastada residência. Fato que serviu de comentário e alimentou aquele vírus que contaminara toda a população com sua chegada. A curiosidade foi motivo de fofocas e burburinhos na venda, na farmácia, nas cozinhas e nas calçadas do pequeno lugar.

Fabricio fora contratado para fazer um forno na sala de jantar do misterioso homem. Logo, o vírus do espanto tomou conta de todos ao saberem do que se tratava o serviço. A construção era tão esdrúxula quanto seu dono. Os pensamentos mais estranhos, maliciosos e tenebrosos se espalharam e tomaram conta das mentes dos habitantes da pobre Tubiacanga. Um pensamento dessa natureza logo contamina toda uma população. Muitos foram os comentários e os achismos também. Agora o vírus do julgamento contaminou os moradores que diziam ser o estrangeiro um falsário,  outros podiam até jurar que estava fugindo da justiça e para os mais fanáticos era a própria figura do Demo. 

As especulações não tardaram, ainda mais, quando o pedreiro relatou o que vira exposto na residência do Dr. Flamel.  Na mesa perto do forno estavam copos como os da farmácia, facas sem cortes, balões de vidros, e alguns utensílios esquisitos que Fabrício não conseguiu identificar estavam sobre as prateleiras da cozinha, parecendo mais coisas do tinhoso.

A população curiosa e inquieta foi ter com as autoridades locais. O subdelegado usando da sua autoridade logo se prontificou a dar um cerco na casa do suspeito. O farmacêutico do alto dos seus conhecimentos e baseado nas informações que lhe dera Fabrício interviu e logo dera o veredito final: O homem é um grande sábio, um químico que ali estava para levar adiante seus trabalhos científicos com calma e tranquilidade que a pequena Tubiacanga lhe oferecia. O vírus do poder circulou nas veias da elite tubiacanguense. 

O respeito que o boticário Bastos conquistara na cidade foi o suficiente para tranquilizar toda a população. Era homem conceituado, formado, vereador e médico também, porque, o único que existia por lá não gostava de receitar e para viver em paz e alimentar o vírus da preguiça entrou como sócio na Farmácia. Dr. Jerônimo era do tipo preguiçoso e acomodado. 

O comportamento recluso, silencioso e o modo bondoso com que tratava as crianças deram a Dr. Flamel crédito diante dos moradores daquela minúscula urbe. Raramente era visto em público e quando o viam era sempre as margens do riacho a contemplar o pôr do sol ou fazendo afago nos pequenos que por lá brincavam.

As autoridades locais se contavam nos dedos. Além do subdelegado, do boticário e do médico existia o mestre-escola e redator do único jornal da cidade, Gazeta de Tubiacanga, filiado ao partido situacionista, o gramático capitão Pelino, não via o sábio com bons olhos. Alertava os amigos do perigo que corriam. O vírus da inveja e do despeito invadiu a alma do velho professor que não admitia concorrência, não que ele fosse um químico, era mesmo um homem das letras, sempre que podia corrigia a escrita de alguém. Mas, o homem era um sábio!

Um belo dia e para surpresa do boticário Dr. Flamel entrou na farmácia. O farmacêutico ficou parado e com um sorriso de satisfação foi até o balcão e lhe deu as boas vindas. Sem muita conversa o químico pede um particular com Bastos e fala da sua descoberta.  Solicita ao farmacêutico, três pessoas idôneas que possam testemunhar a sua experiência. Com voz firme diz se tratar de ouro. O seu invento é transformar ossos humanos em ouro. Agora o vírus da ambição e da riqueza toma conta do conceituado Bastos que logo sugere mais dois outros amigos, o coletor Carvalhais e o presidente da Câmara coronel Bentes. Tudo acertado, os três comparecem à casa do químico no domingo como fora combinado. 

Na manhã da segunda feira, o coveiro notou que um jazigo tinha sido violado e os ossos saqueados. Quanto sacrilégio! Agora “O Sossego” tornou-se um desassossego. E não parou por aí, todas as manhãs mais túmulos eram saqueados. Sem saber o que estava acontecendo foi ao subdelegado e a história macabra se espalhou pela cidade.

Agora o vírus do ódio se espalhou e tomou contou da população.  Os presbiterianos, os católicos, os mais céticos, os negociantes, o presidente da Loja Maçônica, até a bela Cora que nunca se importava com nada a não ser com sua beleza compartilhou da indignação e do horror que o acontecimento provocara em todos. O saque continuava. Alguma atitude precisava ser tomada.  

Toda a população resolver vigiar seus entes queridos e saber quem se atrevia a saquear o campo santo. Afinal, os mortos precisavam descansar em paz e a vida dos tubiacangueses voltar ao normal, pois tudo estava paralisado. Houve uma suspensão das atividades rotineiras e o vírus do medo pairou sobre a cidade e barulhos sobrenaturais passaram a acontecer. Era como se os mortos estivessem reivindicando providências. 

Cedo chegaram ao cemitério, ficaram espalhados por entre os túmulos, mas, a fadiga, o sono e o cansaço o levaram para casa. Quando amanheceu duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos desapareceram. Para resolver de uma vez o mistério o subdelegado convocou dez homens que juraram de pés juntos que vigiariam o lugar sem um cochilo sequer. 

Nas terceiras primeiras noites tudo correu na mais perfeita tranquilidade. Na quarta noite, apostando no cansaço dos vigias, um deles viu um vulto passar por entre as quadras, chamou os demais vigias e logo apanharam os dois assaltantes de ossos. Utilizando de cassetetes e da raiva bateram tanto nos malfeitores que os deixaram desfalecidos. E para surpresa de todos, os larápios eram o coletor Carvalhais e o cel. Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Mesmo moído de tanta apanhar, mas vivo, conseguiu dizer que juntava ossos para o farmacêutico fazer ouro.

O vírus da ganancia, do egoísmo e do interesse entrou pelos poros da população e rapidamente percorreu toda a corrente sanguínea. Afinal, o que interessava velhos ossos, restos sem serventia, melhor se pudessem ser transformados em algo útil, lucrativo. Cada pessoa tinha uma necessidade para ser atendida. E todos correram para a casa do boticário para descobrir a fórmula.

Em disparada homens, mulheres, crianças, velhos e moços se amontoaram na frente da casa de Dr. Bastos. O subdelegado estando na porta impediu que invadissem a botica e mandou que se dirigissem para a praça a espera daquele que tinha o segredo tão desejado. Não tardou e lá vem o farmacêutico, subiu numa cadeira e mostrou uma barra de ouro na mão que reluzia com a luz do sol. A multidão eufórica queria arrancar dele a fórmula. Prometeu ensinar a receita se lhe poupasse a vida. Mas, explicou que não só entregaria impresso na manhã seguinte. Outra vez o subdelegado deu garantia da entrega. Diante da palavra de uma autoridade cada um dirigiu-se para casa com o pensamento voltado: onde arranjaria uma boa quantidade de ossos de defunto. 

Nas residências não se falava noutra coisa. Cada pessoa tinha uma opinião formada sobre o assunto, uns acreditavam, outros achavam impossível e outros desdenhavam da tal descoberta. Mas, no íntimo todos estavam curiosos e desejosos de mudar de vida. Afinal, um pouco de dinheiro não faz mal a ninguém. 

Quando a lua já estava alta no céu, as estrelas a cintilar seu brilho e as luzes das casas foram apagadas. Cada membro da família olhava atentamente se o outro estava dormindo. E assim, o pai, a mãe, o filho, o marido, a mulher, a filha e os criados saíram sorrateiramente em direção ao Sossego. Do rico ao mais pobre não faltou ninguém. O vírus da ganância, do enriquecimento fácil alastrou-se por toda a Tubiacanga. Até o professor Pelino o mais indignado com a profanação dos túmulos lá estava à procura de algum fêmur.  E a bela Cora com suas lindas e bem feitas mãos revolvia a sepultura e arrancava restos de carnes podres ainda agarradas aos ossos. 

O vírus da avareza, do egoísmo, da soberba, da gula e da cobiça tomou o coração, a alma e o corpo daquele povo. Era pouco defunto para satisfazer a ambição tanta gente. O vírus da discórdia foi o último a se alastrar. Ninguém mais reconhecia e nem respeitava o outro. Foram facadas, tiros, golpes mortais e todo tipo de agressão. Famílias se desentenderam. O carteiro que fora em companhia do filho e vendo tamanha confusão decidiu ir à procura do corpo da esposa que em vida era grande e gorda. 

Quando o sol presenteou a terra com seus primeiros raios havia mais mortos no cemitério do que os que estavam lá enterrados há anos. A cidade ficou vazia, o farmacêutico sumiu com sua fórmula, Dr. Flamel não se conhecia o paradeiro, as casas abertas e abandonadas, os corpos espalhados no Sossego. Só mesmo o riacho continuou a deslizar suas águas tranquilamente banhando a terra e recebendo os primeiros raios solar. 

A única pessoa que nunca participou de nada, nunca achou nada, nunca acreditou em nada e nem falou nada: fora o bêbado Belmiro. Vivendo no seu mundo etílico, sonhando com as ideias positivistas aprendidas na faculdade que há muito abandonara. Em passos lentos e cambaleando ele entrou na venda que estava com a porta entreaberta e vazia, pegou uma garrafa de Parati que tinha na prateleira, e  sentou-se a beira do Riacho Tubiacanga a observar a doce água correr pelo seu leito. Assim como ele estava serena e indiferente ao ocorrido.  

A cidade de Tubiacanga nunca mais foi à mesma. O vírus da ambição e do individualismo destruiu a todos, ficando viva a única pessoa que desprovido de qualquer pretensão o vírus não conseguiu contaminar sua alma. O bêbado Belmiro. 

Na primeira década do século XX Lima Barreto nos alerta e nos mostra que: UM PENSAMENTO MALICIOSO, ODIOSO E AMBICIOSO CONTAMINA E MATA UMA POPULAÇÃO INTEIRA.

 A ESCRITA É A NOSSA ARMA.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Vimos assim quanto poder tem a ambição, a ganância e o ódio para destruir um vida ou uma sociedade inteira como refere o texto É um virus que corrói e causa muitas desgraças
    Parabéns pelo texto. Incentvou-me a ler Lima Barreto

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