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A rua da minha infância

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Se essa rua, se essa rua fosse minha eu mandava, eu mandava ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes para minha, para minha memória passar.

A rua da minha infância era altiva e larga, dela guardo as mais doces lembranças, as suas paredes estão repletas dos mais belos dias vividos na minha meninice, a rua que guardo na memória é cheia de significados e personagens que ainda vivem na minha lembrança dos dias de outrora. Eu era feliz e ninguém estava morto.

Defronte a minha rua tinha uma linda praça arborizada que serviu de palco para nossas brincadeiras de roda, pega-pega, bandeirante, pular corda, pigorrilo e sem esquecer a famosa amarelinha ou macaca; as marcas de giz deixadas por nós no chão mostrava a alegria que aquela meninada registrava no solo sagrado do nosso pequeno mundo.

Nessas brincadeiras de roda muitas eram as canções que nos faziam girar em volta de nós mesmos, e que hoje gira na minha lembrança, ouvindo ao longe, muito distante as nossas vozes pequeninas a cantar: … Atirei o pau no gato tó,tó… Eu fui à Espanha buscar o meu chapéu…  Sou leiteira, sou leiteira vendo leite…  E assim, a noite passava em meio a gritos, cantigas e correrias. 

As cadeiras enchiam as calçadas , adultos conversavam, tomavam café e olhavam atentamente o nosso divertimento. Fecho os olhos e vejo as dezenove casas que a compunha. Por ser a Rua da Cadeira era bastante movimentada, na época, tudo se resolvia lá, talvez resquícios da Intendência ou a falta de estrutura da pequena cidade. Na sua parte superior funcionava o Tribunal do Júri e as apurações das Eleições; no térreo as celas, a sala do delegado, e, a área de circulação serviu muitas vezes para estirar cadáveres assassinados ou vitimas de acidentes. De vez em quando arrebentava uma briga no cabaré e as mulheres engalfinhadas e seminuas eram trazidas para resolver a questão. Era um alvoroço e todos corriam para assistir a cena. Um verdadeiro espetáculo, a Rua ficava em polvorosa. 

Quase vizinho a minha avó morava Seu Sousinha, homem valente, corajoso e amigo, fazia coleção de armas, no meu olhar infantil achava bonito ver aquele arsenal atrás de uma porta alta e bem arrojada que ficava na sala de jantar da velha casa. Era o socorro de muita gente e a segurança da rua. 

Dona Zefinha, uma senhora distinta e educada morava numa linda casa avarandada com um filho que surtou depois de longo tempo de boemia. Diziam que o excesso das noitadas com jogatina, álcool, cigarro e mulheres teria desencadeado delirium tremens  e outros tipos de perturbações psicológicas que o levava a certos comportamentos estranho aos nossos olhos. 

Em duas casas antigas com uma porta central e quatro janelas moravam três senhoras, uma delas era costureira, a outra parteira e a terceira, eu hoje a comparo a Carolina da canção de Chico Buarque que tem o mesmo nome, vivia na janela vendo a vida passar. Os mais deliciosos sequilhos secos vinham de lá; pequenos, sequinhos e cortados com carretilhas eram antigas receitas que passava de geração a geração. As duas mais velhas eram vitalinas e a tarde rezavam seus longos rosários se balançando nas redes armadas nos quartos do casarão quase sem móveis e de chão atijolado.  

Dona Emília Gurgel era eximia bordadeira, tudo que fazia era com perfeição, limpa organizada e muito educada criou os filhos com muito sacrifício e sabedoria, embora, sofresse de sérios problemas psicológicos que a levavam a internação em hospícios, tanto ela como o marido sofriam de perturbações psicológicas e emocionais.  

A mais hilária e folclórica da Rua era Rosina: baixinha, gordinha muito fofoqueira, sabia da vida de todos, só não dava conta da dela. Vitalina que era ensinava o Catecismo, fazia sequilhos de goma e deliciosos bolos, gostava muito de viajar para visitar seus familiares no Crato, e sempre trazia uma receita nova para experimentar. Quando meu pai viajava a trabalho era ela a companhia para minha mãe. Ouvi muitas vezes ela cantar a valsa E O DESTINO DESFOLHOU,  dentre outras que não lembro mais.

E O DESTINO DESFOLHOU – Paulo Sergio

Quase no final da Rua em uma casa ampla com largas janelas morava Dona Guiomar Sancho, sua casa serviu de clube para a juventude da época, quase todos os começos de noite eram realizadas tertúlias (assustado); lembro-me de espiar pela janela e nas pontas dos pés ver casais dançando apaixonadamente ao som de Nilton César, Roberto Carlos, Wanderley Cardoso e outros que faziam sucesso na época que explodiu a Jovem Guarda. 

A morte da mãe de uma amiga, nossa companheira de brincadeiras, me causou espanto e tristeza. A exposição do corpo num caixão e do seu lado o bebê nos braços que morrera junto com ela marcou fundo a minha lembrança como uma gravura numa parede. Durante anos estranhava ou não imaginava uma casa sem mãe.  

Sr. Nequinho e D. Elza

No final da Rua ficava a Padaria do meu tio, oriundo de Sousa/ PB, tio Nequinho fazia pão, quinado e poesia. Era uma verdadeira cidade pequenina, algum lugar que se ilumina, aonde toda gente se amava e numa paisagem entre o pão e poesia tio Nequinho fabricava o pão e sonhava a poesia, escrevendo sobre a vida, o amor e o paraíso. O lindo espaço entre a letra e a rima era a beleza infinda revelada pela sua fantasia poética, o espaço vivido por aquele homem culto e cheio de inspiração era solitário e cheio de imaginação. 

Hoje quando retorno ao aconchego da minha terra, em outra casa e com outra gente é como se eu entrasse outra vez no casulo. A temperatura e o cheiro acabam me remetendo ao antigo espaço de um tempo onírico que só mesmo os desvãos da memória são capazes de guardar.

                    Descaracterizada e transformada a Rua da minha infância  hoje e só lembrança.

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