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Aracy da Almeida |
Por: Flávio Ramalho de Brito
A maioria das pessoas somente se lembra de Aracy de Almeida como uma ranzinza jurada em programas populares de televisão, sempre dando notas baixas aos calouros, entrecortadas por divertidas gírias.
Mas a cantora que nasceu no Rio de Janeiro, no subúrbio do Encantado (daí o titulo de Arquiduquesa que lhe deu Hermínio Bello de Carvalho) foi uma das maiores intérpretes da música popular brasileira. Para se ter uma ideia da importância de Aracy como cantora basta dizer que ela era a intérprete favorita de Noel Rosa. Para o jornalista João Máximo, biógrafo de Noel, Aracy era “cantora rara cujo traço mais marcante, além da voz naturalmente triste, pungente às vezes, é a sinceridade: impossível não acreditar em cada palavra, cada nota do que ela canta”.
Aracy de Almeida era amiga e companheira de vida boêmia do Poeta da Vila Isabel, o ela própria conta, na sua linguagem direta e desabrida:
“Noel pra mim foi muito bom, porque realmente quando eu comecei ninguém fazia fé em mim […] e o Noel me deu a mão […] eu convivi uns cinco anos com Noel […] a gente saía pra beber […] e eu ficava nessa até de manhã, quando Noel me levava pra casa”
“[…] passei a conhecer com ele os piores lugares do Rio de Janeiro. No rádio, havia gente que franzia o nariz diante de nós. Éramos tidos como gente que não prestava. […] Mas vamos botar as cartas na mesa: entre mim e Noel nunca houve coisa nenhuma”.
“Ary Barroso, Assis Valente, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo e Custódio Mesquita – essa gente não me dava música porque me achava um lixo, tá entendendo? Por causa dessa minha vida, desse meu modo de falar de coisas assim, eles não gostavam de mim […] De maneira que quem acreditou em mim mesmo foi o Noel, que gostava desse meu gênio, me achava uma pessoa genial”.
Noel Rosa é considerado, atualmente, um dos maiores nomes da nossa música popular, objeto dos mais elaborados estudos acadêmicos e cultuado por todos. Mas, nem sempre foi assim. Nos anos imediatamente posteriores a sua morte, o Poeta da Vila foi inteiramente esquecido. Quem manteve a chama da sua música durante esse tempo que se estendeu até o início da década de 1950 foi Aracy de Almeida.
Até a morte de Noel Rosa, em 1937, Aracy havia gravado somente dez músicas do compositor, segundo levantamento do pesquisador cearense Nirez (Miguel Ângelo de Azevedo). Mas, pela sua ligação de amizade com Noel e por continuar cantando as suas músicas Aracy de Almeida é considerada a grande intérprete do Poeta da Vila Isabel.
Dois meses depois da morte de Noel, Aracy gravou “Último Desejo”, que foi a última música feita pelo compositor e uma das suas canções mais bonitas e que se tornou um dos grandes clássicos da música popular brasileira. A interpretação emocionada de Aracy, que também era apelidada de “O Samba em Pessoa”, com o acompanhamento da flauta de Benedito Lacerda, para muitos é insuperável.
No início dos anos 1950, Aracy de Almeida gravou dois discos exclusivamente com músicas de Noel Rosa, com arranjos do maestro Radamés Gnatalli e capas do pintor Di Cavalcanti.
Mas, por essa época Aracy se queixava por essa vinculação excessiva do seu nome ao de Noel, já que ela tinha na sua carreira grandes sucessos com músicas de outros compositores. Só para citar alguns: “Camisa Amarela” (Ary Barroso), “Fez Bobagem” (Assis Valente), “Louco” (Wilson Batista), “Não me diga adeus” (Paquito, Luís Soberano), “Saia do Caminho” (Custódio Mesquita e Evaldo Ruy) e “Bom dia Tristeza” (Vinícius de Moraes e Adoniram Barbosa).
“[…] isto está se tornando um pouco ‘chato’ pra mim. É o seguinte: Eu explico pra vocês. Eu entro num bar […] mesmo que não vá lá pra cantar, mas pra bebericar e tem sempre um que fala assim… Aracy, canta ‘Feitiço da Vila’ pra gente… ou, então, outros já ‘baratinados’ que gritam assim… Aracy, canta agora o ‘Último Desejo’. E ainda um outro lá no fundo que grita… canta aquela do Manoel Rosas […]”
Em 1968, Aracy de Almeida procurou Caetano Veloso revoltada com o tratamento que havia recebido na Bienal do Samba, um festival de músicas que foi realizado em São Paulo. Caetano conta que Aracy não só pediu pra ele fazer uma samba pra ela cantar, mas, praticamente, ditou como a música deveria ser feita:
“[…] me tratar como glória nacional pensando que vai me salvar, pqp salvar o c… […] eu já tou de saco cheio com esse negócio de Noel […] eu tenho que arrastar esse morto o resto da vida […] quando eu canto é a voz desse morto […] faça uma música da pesada pra eu gravar esculhambando essa porra toda”
Caetano atendeu a Aracy de Almeida e fez “A Voz do Morto”.
“Eles querem salvar as glórias nacionais / As glórias nacionais / Coitados / Ninguém me salva / Ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba / A voz do morto / Os pés do torto / A vez do louco”
Aracy Almeida – “A Voz do Morto”
Caetano Veloso e Paulinho da Viola – “A Voz do Morto”