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Um nome esquecido em Conversa de Botequim

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capa do disco – Di Cavalcanti


Por: João Vicente Machado

Um sonolento garçom fazia a sua costumeira faina de fim de noite, colocando as cadeiras em cima das mesas para facilitar a limpeza do piso. No bar esvaziado, ouviam-se as intermináveis conversas de “saideira”, vindas da única mesa ocupada.


– E essa, de quem é? “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada…”. – Claro que é Conversa de Botequim, de Noel Rosa.  – Essa outra, veja se você sabe? “Quem acha vive se perdendo, por isso agora eu vou me defendendo da dor tão cruel desta saudade…” – Feitio de Oração, de Noel, é um clássico. – E essa aqui? “Quem nasce lá na Vila, nem sequer vacila em abraçar o samba…”. – Essa é fácil, Feitiço da Vila, do Poeta da Vila. – Agora, veja se acerta essa: “Pra que mentir, se tu ainda não tens a malícia de toda mulher…” – Eu acho que é Pra que Mentir, também de Noel.

Essa imaginária cena poderia muito bem ter ocorrido em qualquer botequim brasileiro nesses quase 83 anos decorridos desde a morte de Noel Rosa, em 1937. Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Pra que Mentir e Conversa de Botequim são músicas que estão, indelevelmente, ligadas ao nome do Poeta da Vila Isabel e são sempre relacionadas entre os melhores sambas da vastíssima produção de Noel. Só que, Noel Rosa foi apenas o letrista dessas canções cujas músicas, as melodias que são muito tocadas e assobiadas, foram feitas por Vadico.

– Quem? Vadico? Nunca ouvi falar. É o que muitos dirão.



Vadico talvez seja o mais esquecido compositor da música brasileira, apesar de ser o autor de canções que são bastante conhecidas e frequentemente regravadas, como aquelas que fez em parceria com Noel Rosa. Vadico, como era conhecido, ou Oswaldo Almeida Gogliano, como consta no seu assentamento civil, paulistano nascido no Brás, descendente de imigrantes italianos e de uma família de músicos, começou a vida profissional em São Paulo, garantindo o seu sustento com o piano e a máquina datilográfica. Decidido a viver da música, deixou a datilografia de lado e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se concentrava o grande movimento musical do País. Lá, conheceu Noel Rosa e com ele formou uma parceria que já iniciou com uma obra-prima: Feitio de Oração. Fizeram onze músicas juntos. A diminuta produção foi compensada com a grande qualidade das canções. Para João Máximo, biógrafo de Noel, nada do que fizeram “é menos do que bom. E quase tudo é mais do que excelente”. Infelizmente, os pulmões de Noel sucumbiram, nos seus 26 anos, à vida boêmia e desregrada que ele levava, não permitindo que as suas primorosas letras continuassem a se amoldar, de modo perfeito, às elaboradas construções melódicas e harmônicas criadas pelo piano de Vadico.



Dois anos depois da morte de Noel, Vadico viajou para os Estados Unidos, como pianista de uma orquestra brasileira que ia fazer apresentações na Feira Mundial de Nova York. Ao término do evento, decidiu ficar por lá. Atuou, inicialmente, como arranjador e, depois, como pianista do Bando da Lua, grupo que acompanhava Carmem Miranda. Participou e compôs músicas de fundo (sem ter os créditos) para vários filmes que tiveram a participação da cantora brasileira. Apareceu em seis películas feitas por Carmem, não sentado ao piano, mas, tocando tamborim, com o Bando da Lua.

Carmem Miranda e o Bando da Lua (Vadico é o segundo à esquerda)
Depois de deixar o Bando da Lua, Vadico, durante dois anos, foi o maestro da mundialmente conhecida companhia da bailarina e coreógrafa negra Katherine Durham, com a qual excursionou pela Europa, América Latina e Brasil. Desligou-se do grupo, dizem, pelo amor não correspondido por uma das bailarinas da companhia, que se tornaria, depois, a famosa cantora Eartha Kitt. Eartha era um vulcão em pessoa.  O diretor e ator Orson Welles, que teve um caso com ela, dizia que foi a mulher mais sensual que ele havia conhecido. Eartha se apresentava com gestos lascivos, e, uma vez, reclamada, pelo seu comportamento, pelo dono de uma boate em que atuava, deixou-o no chão com um direto digno de um boxeador. Numa apresentação que fez na Casa Branca, Eartha causou grande mal-estar aos presentes ao condenar, na frente do então presidente norte-americano Lyndon Johnson, a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Quando de um lançamento de um disco de Eartha no Brasil, Vadico já estava de volta ao Rio de Janeiro, encontrei, em uma entrevista que ele deu a um jornal da época, o impiedoso comentário sobre Eartha: “como bailarina, é medíocre; como mulher, idem; como cantora, uma droga!”. O que mostra que a relação entre os dois não foi bem resolvida. Mas, talvez, o pacato e retraído Vadico, não tivesse mesmo se adaptado ao rojão, como se diz por aqui, da tempestuosa Eartha Kitt.


Vadico permaneceu nos Estados Unidos por quase 15 anos. Ainda quando se encontrava lá, recebeu a desagradável notícia de que, em discos que haviam sido lançados no Brasil com músicas em que ele era parceiro de Noel Rosa, as gravadoras haviam omitido o seu nome na autoria das canções. Vadico teve que recorrer à justiça para fazer valer os seus direitos. Começava aí, a sua luta para evitar que a poeira do esquecimento cobrisse a sua obra em parceria com Noel. Vadico voltou, em 1954, para o Brasil, retomando, no Rio de Janeiro, seu antigo trabalho como pianista na noite, e, intensificou a sua atividade como arranjador, orquestrador e, também, como compositor, com vários parceiros. Gravou alguns discos instrumentais dançantes, elogiados pela crítica. Em meados de 1956, Vadico recusou um convite do seu amigo, e também parceiro, Vinícius de Morais, para musicar uma peça que o poeta iria encenar, usando o mito grego de Orfeu nos morros cariocas. Em depoimento, Vinícius afirma que Vadico se escusara do convite alegando não se julgar em condições para a tarefa. Para o jornalista João Máximo, isso não faria sentido, já que Vadico, no tempo que passou nos Estados Unidos, trabalhou na composição de músicas para filmes e peças na Broadway, e, a recusa teria sido motivada por problemas de saúde que ele tinha, já iniciados nos EUA. A vaga de Vadico foi ocupada por um jovem maestro chamado Antônio Carlos Jobim, e, a parceira com Vinícius, que ali começava, mudaria a história da música popular brasileira.

Para aqueles que gostam de fatos curiosos: No início de julho de 1959, quando Vadico se apresentava, no Rio de Janeiro, na boate Plaza, um jovem cantor, totalmente desconhecido do público, que fazia dois meses que completara 18 anos, assinava o seu primeiro contrato profissional, para cantar na boate, acompanhado por Vadico, sambas-canções da época e músicas de João Gilberto, a quem ele procurava imitar. O desconhecimento do cantor era tanto que a própria boate trocava seu nome nos anúncios publicados nos jornais. Mas, isso duraria pouco tempo. O cantor mudaria de repertório e se tornaria um dos mais populares artistas do País.

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Diário Carioca, 7 e 17 de julho de 1959
Em 1962, Vadico sentiu-se mal durante uma sessão de gravação, e, apesar de levado ao hospital mais próximo pelo baterista Wilson das Neves, seu amigo, morreu no trajeto, dentro do táxi que o transportava. O compositor e músico, de méritos reconhecidos, que trabalhara em estúdios de cinema, de Hollywood e Disney, que se apresentara nas mais importantes casas de espetáculos do mundo, na ocasião, morava em Copacabana, num minúsculo quarto e sala, que tinha apenas uma cama e um pequeno piano, tipo de armário. Em 1979, dezessete anos após a sua morte, foi feito, por uma pequena gravadora de São Paulo, o primeiro disco só com músicas de Vadico, que, hoje, é uma raridade que poucos a possuem, dentre os quais eu me incluo. De lá pra cá, já são mais de quarenta anos, nada mais foi feito para recuperar a obra desse grande compositor brasileiro.

Feitiço da Vila – Martinho da Vila


Conversa de Botequim – Chico Buarque


Feitio de Oração – Marisa Monte


Pra que mentir? – Joao Bosco –


Pra que mentir? – interpretação incomum de Genival Cassiano, o precursor da música soul brasileira, esquecido paraibano, nascido no bairro de José Pinheiro, em Campina Grande.


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2 COMENTÁRIOS

  1. A contribuição de Noel Rosa para a MPB foi de grande valia para mostrar a boa qualidade do samba carioca. Cantava o cotidiano da vida carioca com clareza, beleza e destreza. Viveu pouco e desfrutou o que tinha de melhor nas noites do Rio.

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