Por: João Vicente Machado
Era seletivo e tinha um olho mágico que lhe permitia enxergar a qualidade de grandes compositores. Luiz Gonzaga reuniu em torno de si vários compositores qualificados para respaldar a saga musical que construiu, ao longo da sua fecunda caminhada .
Ex: João Silva, Onildo Almeida, Rosil Cavalcanti, Patativa do Assaré, Jacinto Silva, José Clementino, Antônio Barros, José Fernandes, Beduíno e até Raymundo Asfora.
‘Mas o real tripé de qualidade que rei do Baião conseguiu juntar foi o que eu costumo chamar a Santíssima Trindade da música popular nordestina e tem como personagens dois cabras do Pajeú das Flores e um do sertão do Ceará. São eles: Zé Dantas, Zé Marcolino e Humberto Teixeira, respectivamente.
Humberto Teixeira era chamado por ele o Doutor do meu Baião e foi o primeiro. Há até quem credite à dupla o mérito de reinventar e nordestinizar o Baião. Esse era do Iguatu no sertão do Ceará e era o mais urbano dos três.
Zé Dantas era médico e originário de Carnaíba no Vale do Pajeú em Pernambuco, terra de Luiz Gonzaga. Era romântico e por ser de uma jazida de poesia, expressava no seu bordado musical, “a terra, o homem e a luta” no dizer de Euclides da Cunha. É da autoria dele a famosíssima toada Vozes da Seca, que encerrava um protesto contundente, aliais um dos primeiros da música popular brasileira.
Zé Marcolino, paraibano de Sumé, de quem já falei nesse Blog e oportunamente voltarei a fazê-lo, além de sanfoneiro e também cantor, foi um poeta cuidadoso com a métrica e a rima e usava muito a rima rica que era o seu forte. Morreu prematuramente num acidente de carro próximo a Carnaíba, terra de Zé Dantas.
O texto que se segue é de Humberto Teixeira e foi publicado no jornal Diário do Nordeste, edição de 05 de janeiro de 2005. O resto é com a caneta de Humberto Teixeira: “Se o Baião é bom sozinho, que dirá Baião de Dois.”
O BAIÃO
O ritmo cadenciado e uniforme, marcando na viola nordestina a peculiaríssima divisão musical das cantigas caboclas… O passo da dança, miúdo e recortado, no embalo da sanfona, tal como se até dançando manifestasse o sertanejo aquele certo pundonor de ser alegre; traço vivo e marcante, característica de um povo que se habituou a viver em sofrimento… A linha melódica sentimental, de uma beleza mística e singela, típica da gleba, e que a técnica musical do Sul tenta debalde fixar na pauta ou prender em um binário, aceitável talvez, bem longe do genuíno e do perfeito… O aboio do vaqueiro consolando a rês magra no seu modo através da terra calcinada, de onde desapareceu o último xique-xique… O voo derradeiro da Asa Branca fugindo à fornalha crepitante da seca… O caboclo que emigra para fingir que vive em outras terras… O ouro do sol, o fogo do sol, a ira do sol… Aquela saudade cearense, doce e terna, tão diferente das demais saudades, responsável pela comunicativa tristeza que tão comumente se vê em olhos de exilado… A primeira chuva fina e peneirada, anunciando a fartura que vem que canta e se diverte… O cheiro gostoso da terra molhada lembrando o cheiro da cabocla do sertão… O Aracati ciciando entre palmeiras e carnaubais… O grande festival do verde se espalhando, qual mar de clorofila, por toda a plantação… A doce Iracema… A triste jandaia… As trovas matutas de Leonardo Mota… A viola do cego Aderaldo… As sextilhas dolentes de Juvenal Galeno… As cantigas de Capiba e de Zé Dantas… “O Quinze” de Rachel de Queiroz… O apego topográfico de Nestor de Hollanda e Fernando Lobo… A retraída sensibilidade de Magalhães Júnior… As histórias de Zé Lins do Rego… A extraordinária musicalidade de Guio de Morais, de Sivuca e do “nordestino” Hervé Cordovil… A voz de Carmélia Alves, outra “nortista” que também nasceu nas bandas de cá… O Balanceio de Lauro Maia, do grande Lauro Maia… A sanfona mágica de Luiz Gonzaga, embaixador sonoro do sertão… A contribuição rítmica, melódica e lírica das terras ensolaradas ao grande concerto orquestral da Pátria comum… A sonoridade triste da minha lira canhestra… As endechas sem métrica da minha musa capenga… ´? Isso, tudo isso, é o Baião!