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O dia em que dois comunistas paraibanos foram assistir a um filme na Casa Branca.

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No início dos anos 1960, o Nordeste pegava fogo, mais precisamente a zona da mata de Pernambuco e da Paraíba, onde se concentrava a região canavieira e também a principal atuação das Ligas Camponesas, associações de trabalhadores rurais que vinham sendo criadas, desde a segunda metade da década anterior, em defesa da reforma agrária e de melhoria nas condições de trabalho no campo. Preocupado com a grande disparidade de renda e desenvolvimento existentes entre o Nordeste e o Sudeste e Sul do País, o Presidente Juscelino Kubitscheck havia criado, em 1959, a Sudene, órgão para planejamento e planificação das ações governamentais na região nordestina. Para chefiar o órgão foi escolhido Celso Furtado, um jovem economista paraibano que fizera carreira no exterior, com respeitável prestígio acadêmico, e que já havia publicado seu livro clássico Formação Econômica do Brasil. Na equipe de Furtado, outro paraibano ocupava cargo de destaque, o caririzeiro de Cabaceiras, Antônio Juarez Farias, que era o responsável pela área de industrialização da Sudene. Celso Furtado foi mantido na Superintendência da Sudene por Jânio Quadros e por João Goulart, os presidentes que sucederam Juscelino. Medidas estruturantes propostas por Furtado eram rechaçadas por grupos políticos que viam fugir das suas mãos as ações paternalistas com que vinham controlando, há décadas, seus redutos eleitorais, através do velho Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – Dnocs. Eram os industriais da seca, na expressão forjada pelo jornalista Antônio Callado, que eram liderados pelo senador paraibano Argemiro Figueiredo, que, na tribuna do Senado, chegou a acusar Celso Furtado de querer “bolchevizar o Nordeste”. Na época, houve uma grande reação dos trabalhadores contra as posições adotadas por Argemiro Figueiredo, com relação à Sudene e a seu Superintendente. Em Recife, aconteceram manifestações populares, e, em uma delas, foi feito um “enterro simbólico” do senador paraibano, assunto que foi matéria de capa em uma revista de circulação nacional. A capa da Mundo Ilustradodestacava: “Argemiro ‘enterrado no Recife’” e uma das fotos da reportagem tinha a seguinte legenda: “Entêrro de Argemiro teve vela, mas não chôro”.  

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Nos seus “Diários Intermitentes”, publicados, pela primeira vez, no ano passado, pela editora Companhia das Letras, Furtado escreveu que “um senador da República, de sua tribuna, me denunciara ao país como elemento perigoso […] Na luta pela Sudene talvez o episódio mais interessante haja sido esse das acusações pessoais a mim. As acusações visavam me apresentar como elemento socialmente perigoso, como ‘comunista’. As acusações não se baseavam em atos meus, nem na orientação geral da Operação, nem em escritos meus, em nada de real”.


Vivia-se o tempo da Guerra Fria. Estados Unidos e a União Soviética disputavam a influência sobre os países que eram chamados de “satélites” das duas potências. Os raios da vitória, em 1959, da revolução comandada por Fidel Castro em Cuba alcançavam toda a América Latina. Os Estados Unidos se preocupavam com o surgimento de novas Cubas e o Brasil, pelas suas dimensões, era objeto da especial atenção dos norte-americanos. Dentre as medidas para diminuir o ambiente de quase convulsão social que existia no Nordeste, o presidente John Kennedy criou um programa assistencial de ajuda às regiões mais carentes, chamado Aliança para o Progresso. Em 1961, seu irmão mais novo, o futuro senador democrata Edward “Ted” Kennedy, esteve em Pernambuco, visitando a sede da primeira Liga Camponesa, localizada no engenho Galileia, em Vitória de Santo Antão. No mesmo ano, uma equipe da rede de televisão ABC veio ao Brasil para fazer um filme sobre o Nordeste, a ser exibido nos Estados Unidos. A Sudene deu algum apoio logístico às filmagens, e, Celso Furtado foi um dos entrevistados do documentário, que teve, também, a participação do inflamado deputado pernambucano Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas.

Naquele ano, Celso Furtado e Juarez Farias viajaram aos Estados Unidos para um encontro com o presidente John Kennedy, para discutirem planos norte-americanos para uma ajuda ao Nordeste. Embora considerado pelos grupos mais conservadores como comunista, Celso Furtado, também, era bombardeado por parte da esquerda, que lhe atribuía, como ele próprio escreveu, a pecha de “entreguista” e “agente de Wall Street”, pelos contatos que ele vinha mantendo com os norte-americanos e com o próprio presidente John Kennedy.


Durante a permanência em Washington, os diretores da Sudene, foram convidados, pelo presidente Kennedy, para assistirem, numa sessão especial noturna, realizada na Casa Branca,  à exibição daquele documentário que havia sido filmado em Pernambuco pela rede ABC. Quando da exibição, Celso Furtado estranhou a forma como a situação nordestina era abordada na película, como se a região já fosse uma nova Cuba prestes a explodir, fomentando, assim, o medo de um levante revolucionário no Brasil, naqueles espectadores dos EUA que viessem a assistir ao filme. Furtado, talvez, não tivesse percebido, na ocasião, que aquilo já era uma maneira de preparação da opinião pública norte-americana para um possível e provável apoio dos Estados Unidos a um golpe que, então, já se gestava no Brasil. Apoio que, efetivamente, veio a ocorrer, em 1964, como demonstram, largamente, os documentos oficiais norte-americanos, referentes ao período, que foram, posteriormente, liberados e disponibilizados para consulta por pesquisadores e historiadores.


Durante quase cinco décadas, esse documentário, que chamava-se Brazil: The Troubled Land (A Terra Conturbada) esteve “desaparecido”. Há alguns anos, se descobriu que o pequeno filme, de pouco mais de 25 minutos, estava disponível no acervo da Biblioteca da Universidade de Indiana, mas dependia, para sua reprodução, da autorização da empresa McGraw Hill, detentora dos direitos do filme. Com a democratização de acesso às informações, através da internet, que existe nos dias de hoje, o documentário apareceu disponibilizado num site aberto e, atualmente, está no youtube. É uma valiosa amostra daqueles tempos conturbados. Há, no filme, uma cena emblemática daquela época, a que mostra um grande latifundiário pernambucano atirando com seu revólver e dizendo que aquela era a lei que valia nos seus domínios. O mais interessante de tudo é que, com o conhecimento da ficha técnica do documentário, se descobriu que a diretora do filme, Helen Jean Rogers, uma insinuante loura, bem relacionada na Casa Branca, que tirou até foto de braços dados com o incendiário deputado Francisco Julião, era, na verdade, uma agente da CIA, a agência de inteligência dos EUA, e, já estivera, anos antes, no Brasil, como “estudante”, tentando se infiltrar no movimento estudantil e na UNE. Os nossos “amigos” que ficam ao norte do rio Bravo, não brincam em serviço.

Helen Rogers (de chapéu), a diretora do filme, de braços com Julião



Celso Furtado, durante toda a sua vida, nunca teve qualquer vinculação com o Partido Comunista. Com a chegada dos militares ao poder, em 1964, fez parte da primeira lista dos cassados, perdendo seus direitos políticos por dez anos. Foi para França, onde desenvolveu, por 20 anos, respeitável carreira como professor da Sorbonne. Também ensinou nas universidades de Yale e Columbia, nos EUA, e Cambridge, na Inglaterra. Seus livros foram, e continuam a ser, traduzidos para vários idiomas, entre eles, o chinês e o persa. Mesmo após a sua morte, em 2004, continua sendo, sem nenhuma dúvida, o paraibano de maior prestígio acadêmico internacional.


Também, não existe o menor indício de que Juarez Farias tenha frequentado células leninistas. Depois da sua passagem pela Sudene, exerceu vários cargos de destaque na administração pública federal e estadual e foi Vice-Governador da Paraíba. Hoje é um ordeiro aposentado, como Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, e ocupa uma cadeira na Academia Paraibana de Letras. Mas, nos tempos estranhos que estamos, atualmente, vivendo no País, em que a ignorância vem ganhando predominância, e, parece que a burrice se tornou uma ciência, pode-se imaginar que, pelas ideias que Celso Furtado e Juarez Farias defendiam no início dos anos 1960, contrárias à situação de brutal desigualdade social que existia, e, ainda existe, no Brasil, eles seriam, hoje, com toda a certeza, tachados como ferozes bolcheviques, chegados do sertão de Pombal e dos xique-xiques e mandacarus de Cabaceiras, vestidos e paramentados com roupas de couro e com carabinas nas mãos, como Coriscos saídos do filme Deus e Diabo na Terra do Sol,de Glauber Rocha. E, certamente, não seriam convidados por Trump para assistir a um filmezinho na Casa Branca.

Para relembrar, ou pra quem não a conhece: a cena final, com Corisco, no filme Deus e Diabo na Terra do Sol, com a voz e o violão de Sergio Ricardo e a música de Villa-Lobos.  

Documentário Brazil: The Troubled Land – A Terra Conturbada 1961, legendado. 

Flávio Ramalho de Brito

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5 COMENTÁRIOS

  1. Amigo Flávio.
    Um texto desse naipe repõe os fatos históricos distorcidos, reposiciona na história os personagens da época e da a verdadeira dimensão das lideranças pretéritas. Por ocasião da escolha do paraibano do século eu votei em Celso Furtado por considerá-lo o mais importante quadro político/administrativo não somente da Paraíba mas do nordeste brasileiro.
    Com todo respeito ao grande poeta Augusto dos Anjos o vencedor, a dimensão de Celso transcende.

  2. Li e reli o texto que satisfez plenamente o desejo que alimentava de conhecer este período da história que envolve profundamente o Nordeste ou seja a criação do da Sudene, as Ligas Camponesas, Aliança para o Progresso, a atuação de Celso Furtado,etc, etc nestes tempos de ISOLAMENTO e em que a burrice é uma ciência como diz o autor, eu me delicie e muito aprendi. Parabéns

  3. Li e reli o texto que satisfez plenamente o desejo de conhecer a História que envolve profundamente o Nordeste ou seja a criação da Sudene, as Ligas Camponesas a atuação de Celso Furtado, o porquê da Aliança para o Progresso etc,etc. Nestes tempos de ISOLAMENTO, e tempos em também a ciência é uma burrice como bem disse o autor, eu me delicie com o texto e muito aprendi.Parabé

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