Por: João Vicente Machado
A Cidade do Crato, no sul do estado do Ceará, é o que se pode chamar uma cidade bela e acolhedora. Situada na vertente norte da chapada do Araripe, recortada pela silhueta da Serra Famosa, de clima ameno e paisagem sempre verde, transformou-se no sonho de moradia do baronato da região do cariri cearense, parte dele oriundo do Juazeiro do Norte que tem escolhido o Crato pela qualidade de vida.
Berço da heroína Bárbara de Alencar e única cidade do Ceará a aderir à revolução pernambucana de 1817, um movimento de viés separatista e libertário, de mais musculatura do que a Inconfidência Mineira. Na sua rebeldia condensou a insatisfação popular contra o controle de Portugal, contra a política fiscal do Império e contra as desigualdades sociais evidenciadas pela Coroa Portuguesa.
Foi denominada a Revolta dos Padres pelo engajamento de um número expressivo de clérigos engajados na luta, como o padre Roma, pai do general Abreu e Lima, companheiro de lutas de Simon Bolívar, e o conhecidíssimo frei Caneca, entre outros nacionalistas.
O Crato além de heróis e heroínas famosas teve e continua a ter um caldo cultural muito denso, de onde brotaram muitos intelectuais expressivos e de renome, como o Dr. Raimundo Borges, jurista renomado, consorte de uma lavrense e o Dr. Irineu Pinheiro historiador e sobrinho do coronel Chico de Brito.
Todavia, entre os eruditos, a cidade não deixou de produzir e consagrar personagens populares espirituosos que também fizeram história, como foram os casos de Chico de Brito, Nelson Pintor e Ramiro Feio.
Ramiro era natural da cidade do Crato, figura muito conhecida e o epíteto que lhe acompanhava o nome, era creditado à sua reconhecida e premiada feiura. Premiada sim, pois segundo as informações que colhi, chegou a ganhar por duas vezes, o prêmio de mister feiura.
Segundo o que ouvi de Itamar Filgueiras, meu vizinho dos velhos tempos na rua dos Cassacos em Lavras da Mangabeira, as peripécias de Ramiro eram várias e a maioria delas ocorridas nos mandados que fazia para o reitor do seminário e que recebiam o retoque a lá Ramiro.
Tinha também naquilo que hoje chamamos de bico, uma ação laboral no velho cemitério municipal N. Senhora do Perpétuo Socorro, no oficio esporádico de coveiro, onde às vezes ocupava para dormir, uma dependência interna que existia na necrópole, localizada no final da Rua Nélson Alencar, logo após o Colégio Diocesano do Crato.
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Cemitério de N.Sra. do Perpétuo Socorro |
No mês de setembro comemora-se festivamente e com muito louvor, o concorrido evento religioso que era a festa da Virgem das Dores, padroeira do Juazeiro do Norte, a 18 km do Crato.
As duas cidades eram ligadas através de uma ponte rodoviária, composta por Kombis chamadas peruas, que circulavam à partir de 06:00h até às 20:00h com intervalo de meia hora nos dois sentidos, transportando passageiros onde hoje circula o metrô do Cariri.
Pois bem, na noite do encerramento da festa, Ramiro vestiu a sua melhor roupa, colocou perfume, um pouco dinheiro que possuía no bolso, apanhou a Kombi no fim da tarde e foi pra festa do Juazeiro.
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Colégio Diocesano do Crato |
Em lá chegando entreteu-se tanto, a ponto de perder o horário da última Kombi da noite que o levaria de volta ao Crato. Já quase sem dinheiro, tentou contratar um carro de praça, mas seu esforço foi em vão e por ser muito conhecido fisionomicamente como ele era, nenhum motorista se arriscou a fazer a corrida com medo do prejuízo.
De repente surge um Jeep Willys chapéu de couro com placa de Bacabal no Maranhão, que houvera trazido alguém e voltaria apenas com o motorista, e renasce a esperança em Ramiro de aproveitar o ensejo para voltar para o Crato. Nesse sentido, abordou o motorista estava de saída e arriscou a carona, pois o itinerário de volta tinha até o Crato como passagem obrigatória. O motorista assentiu e fez uma pequena exigência a Ramiro pedindo uns trocados “para a gasolina,” com o que Ramiro concordou e logo embarcou no Jeep.
A estrada era de terra e logo após a passagem do Seminário Salesiano entraram na zona rural. Ramiro, não olhava para o motorista nem falava e respondia às perguntas que lhe eram feitas, através de monossílabos resumidos a sim ou não.
Ao passar pelo pau do guarda e atingir à Praça Francisco Sá recebeu a orientação sinalizada por Ramiro indicando o rumo rua Nelson Alencar, onde morava nosso primo Antônio Machado e ao chegar em frente ao cemitério pede parada, desce e diz que vai pegar o dinheiro para pagar a corrida, entrando às pressas no cemitério.
O motorista não se apercebeu onde realmente estava e ficou aguardando na frente da capela, sem que Ramiro desse o ar da graça.
Depois de algum tempo de espera começou a buzinar, incomodando a vizinhança que já dormia, quando um senhor sai à porta e pergunta a razão do buzinaço. O motorista encabulado alega estar à espera do pagamento de uma corrida e que o passageiro entrara para pegar o dinheiro e ainda não tinha voltado. O interlocutor informou assustado: “senhor, ai é o portão de entrada do cemitério!”.
Ao ouvir essa revelação inesperada, o motorista dá partida ao Jeep e como um bólido sai apavorado e a toda velocidade de jeep pelas ruas do Crato até sair da cidade e sumir.
No seu pavor, certamente tinha a certeza de ter transportado uma alma penada e se vivo fosse, ainda hoje em dia, ainda estaria correndo e contando essa estória com a convicção de ter transportado um fantasma enquanto Ramiro Feio dormia um sono reparador.
Referências: depoimento do seminarista e depois professor de português Itamar Filgueiras;
Fotografias: http://colegiodiocesanodocrato.com.br/