Amar sempre

Por: Neves Couras;

Acordei feliz. Não por qualquer motivo aparente, mas pela gratidão à divindade pelo que sou. A música diz “Eu nasci assim”. Discordo, não nasci assim. Nasci muito tímida em um tempo que não era permitido que as crianças escutassem as conversas dos adultos. Lembro que quando minha mãe começava a contar como foi o parto dos gêmeos, ela olhava ao redor, estávamos nós com os olhos e a atenção voltados para aquele relato, mas antes de continuar, ela mandava que saíssemos da sala. Meu irmão, um dos gêmeos, sempre reclamava “nunca iremos saber dessa história. Mãe só fala quando a cabeça apareceu… pronto”. Não poderíamos saber como se deu o restante do parto.

Não podíamos nos intrometer em nenhuma conversa dos adultos. Lá em casa a surra era comunitária, não ficava ninguém de fora. Daquele modelo: não sei porque estou te batendo, mas você sabe porque está apanhando. Na verdade, eu nunca sabia.

Uma vez pedi para apanhar, pode? Pois é. Eu tinha por volta dos 8 anos, mas era responsável pelo meu irmão mais novo. Ele deveria ter uns dois. Minha mãe saiu logo após o almoço para visitar uma amiga, e deixou a ordem: dê banho em seu irmão e acrescentou:
– Ele está gripado precisa tomar banho morno.

Eu era tão inocente que não sabia a diferença da água aquecida pelo sol ou pelo fogo. O resultado era o mesmo, eu pensava (e de fato é). Lá em casa só tinha o fogão a lenha. Eu pensei do trabalho quer era ter que acender o fogo, mas aí me lembrei de um tonel no quintal, cheinho da água da chuva e estava bem morninha. Pensei: vou usar essa água mesmo.

Quando ela chegou, meu irmão estava limpinho e cheiroso. Ela olhou para o fogão, não tinha brasa. Foi logo perguntando como você deu banho no menino, se o fogão está sem nenhuma brasa. Eu bem “conhecedora da ciência” disse logo, tirei água do tonel. Pronto. O mundo caiu por terra. Ela dizia aos berros: seu irmão vai morrer e eu vou te matar de uma surra, já foi pegando uma corda que vivia a disposição do serviço, e quanto mais ela mais me batia, mais eu pedia para que ela batesse, pois em meu pensamento, eu apanhando meu irmão não morreria. Bom, aparentemente minha ciência estava correta, o menino não morreu.

Conto essa história, mas não tenho nenhum sentimento ruim com relação a minha mãe. Tudo é o tempo. O tempo em que vivemos. Hoje, sendo mãe e avó compreendo o jeito de ser daquela mulher tão sofrida, mas tão forte e verdadeira. A professora que nos ensinou a ser o que somos. Educados, éticos, generosos e cheios de amor por ela e por nosso pai.

Era o produto do seu tempo. Descontava em nós suas frustrações, como incontáveis outras mães de seu tempo. Para ela, o papel de mãe era o de manter seus filhos vivos e saudáveis. Ainda fez mais que muitas, mais inclusive mais que nosso pai: sempre se esmerou em nossa educação pensando que precisávamos de uma vida melhor. Afeto, carinho, conversas… não estavam, pensava ela, em seu escopo.

Voltando à minha gratidão pelo dia de hoje, compreendo que precisamos ser gratos por tudo em nossa vida. Mesmo o sofrimento, a dor, a escassez, nada vivemos sem merecimento.

Falando em merecimento, há quem pense que merecimento se traduz conquistas materiais, tipo premiações, ganhar muito dinheiro, reconhecimento da “sociedade” … Merecimento é, na verdade, receber de volta tudo que você enviou para o cosmos. Colher tão somente aquilo que plantou.

Por isso, não sei se as surras que tomei foram pelo merecimento de coisas passadas, ou por merecimento dessa encarnação. Não sei dizer. Mas sei dizer também que não sou o que sou porque apanhei muito. Não. Sou o que sou porque a minha índole é de ser como sou.

Não sou boa de briga, não sei revidar desaforo, mas também não recebo alguns “presentes” que me mandam. Aqueles do tipo que sei que me mandam por inveja, por ciúme, por acharem que sou como quem me manda o desaforo. Claro que cada um só dá o que tem. E, eu quero mandar para todos que me leem, um pouco de gratidão, esperança e fé para todos os dias de nossa existência.

Quero lembrar a todos vocês e a mim mesma que nós não somos meros produtos do meio e do tempo. Somos isso também, mas também somos nossos amores, nossas paixões, nossos medos, nossas tristezas e nossos cansaços, mas, fundamentalmente, somos aquilo que fazemos de nós mesmos.

Não sou mais a menina que apanha por nada, tampouco fui a mãe que batia. Fui eu mesma, e ainda sou, em cada pulsar do meu coração, eu. Sejamos, todos, nós mesmos sempre.

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