Por: Antonio Henrique Couras;
Há uma violência que não faz barulho, que não levanta poeira ao cair, que não deixa crateras no chão, mas que cava túmulos no ventre: a fome. Entre os horrores da guerra, ela é uma das armas mais antigas e, paradoxalmente, uma das mais ignoradas. Enquanto bombas rugem e balas silvam, ela age em silêncio, corroendo aos poucos a carne, a mente e a esperança. Sua história, embora pouco celebrada nos livros didáticos, está escrita em ossos, em diários rasgados, em cartas nunca enviadas. Hoje, mais uma vez, essa arma é empunhada e seu alvo tem nome: Gaza.
Desde que os homens guerreiam, privar o inimigo de alimento tem sido tão eficaz quanto empunhar uma espada. Na Antiguidade, os exércitos compreendiam que conquistar um território não exigia necessariamente confronto direto. Bastava cercar. Cortar as vias de suprimento, isolar os povoados, destruir plantações, envenenar poços. A fome fazia o que a batalha não conseguia: dobrava a resistência, quebrava o orgulho, punha reis de joelhos.
Na Mesopotâmia, nos registros de guerras sumérias e acadianas, já há menções ao uso de cerco para forçar a rendição. Em 701 a.C., Senaqueribe, rei da Assíria, sitiou Jerusalém e, segundo registros, esperava que a escassez acabasse com a força dos defensores. Séculos depois, Nabucodonosor faria o mesmo com a cidade, culminando na destruição do Primeiro Templo.
Na Grécia antiga, durante a Guerra do Peloponeso, os espartanos cercaram cidades aliadas de Atenas por meses, impedindo que qualquer alimento entrasse. Durante o cerco de Siracusa, as táticas de guerra incluíam destruir os campos ao redor antes mesmo de iniciar o confronto direto. Roma, com sua eficiência militar, aprimorou o cerco como arte estratégica. O cerco a Jerusalém no ano 70, comandado por Tito, é um exemplo brutal: a cidade foi tomada pela fome antes de cair pelas armas. Estima-se que centenas de milhares tenham morrido não pelo ferro, mas pela ausência de pão.
A fome ultrapassou o campo de batalha e tornou-se política de Estado. Na Idade Média, com muralhas se tornando cada vez mais espessas e exércitos mais numerosos, a fome era um aliado previsível. Cidades como Constantinopla e Paris sobreviveram a sucessivos cercos à custa de racionamento extremo e canibalismo. Os relatos da peste negra, inclusive, revelam como a fome enfraquecia as populações, tornando-as mais vulneráveis às doenças, mais uma vez, a guerra silenciosa agindo pelas beiradas.
Com o avanço dos impérios europeus, a fome tornou-se parte de projetos coloniais. Na Irlanda, durante a Grande Fome de 1845-1852, a resposta britânica à crise foi marcada não apenas pela negligência, mas por medidas que impediam os irlandeses de receber ajuda efetiva. Milhões morreram ou emigraram, e muitos historiadores consideram o episódio uma forma de extermínio indireto, justificado por teorias racistas e de dominação econômica.
No século XX, a fome foi usada com cálculo e precisão por regimes totalitários. Durante o Holodomor, a União Soviética, sob Stalin, impôs metas de produção impossíveis aos camponeses ucranianos, confiscou grãos e impediu que qualquer ajuda chegasse. O resultado? Cerca de quatro milhões de mortos. A fome não era consequência da guerra — era a própria guerra.
Do lado nazista, o “Plano da Fome” previa que milhões de soviéticos seriam deixados à morte por inanição nos territórios ocupados. A lógica era simples: eliminar populações “indesejadas” sem gastar munição. O cerco a Leningrado (atual São Petersburgo), entre 1941 e 1944, é talvez o episódio mais emblemático: por 900 dias, a cidade foi sitiada. Quase um milhão de pessoas morreram, a maioria de fome.

No cerco de Varsóvia, no Gueto Judaico, os alemães limitavam os judeus a menos de 200 calorias por dia. Menos do que o necessário para manter um ser humano vivo. A fome virou método, ferramenta, doutrina.
Mesmo após a criação da ONU e da consolidação dos direitos humanos, a fome continuou sendo usada como instrumento de guerra e dominação. No Sudão, Etiópia, Iémen, Síria, a escassez de alimentos e água potável não foi apenas efeito colateral de conflitos, mas resultado de decisões políticas intencionais.
A ONU já alertou diversas vezes que impedir o acesso humanitário a populações civis constitui crime de guerra. Mas a realidade no campo é outra. Quando se impede um comboio de chegar, quando se bombardeia uma padaria, um armazém, uma plantação, está-se dizendo: não queremos apenas vencê-los, queremos fazê-los desaparecer.
A fome, nesse contexto, é cruel não apenas pelo sofrimento físico, mas pelo que ela impõe ao espírito. Um povo faminto não canta, não reza, não sonha. Ele sobrevive. E sobreviver, às vezes, é tudo que resta quando a dignidade já foi devorada.

Em Gaza, 2023 e 2024 deixaram de ser anos no calendário para se tornar capítulos de uma tragédia em tempo real. Após os ataques do Hamas em outubro de 2023, o governo israelense declarou que não haveria mais fornecimento de água, eletricidade, combustível ou alimentos para a Faixa. “Estamos lutando contra animais humanos e agiremos de acordo”, declarou um ministro israelense na época. A declaração não foi só retórica: foi política de Estado.
A destruição de padarias, bloqueios à entrada de ajuda humanitária, ataques a comboios da ONU e a morte de voluntários são fatos registrados. Organizações como Human Rights Watch e Médicos Sem Fronteiras apontam que há um padrão claro: sufocar Gaza, não apenas por ar, mar e terra, mas pela barriga. Crianças desnutridas, mães que tentam produzir leite materno sem comer há dias, famílias que comem grama e farinha estragada. Em algumas áreas do norte de Gaza, a ONU já classificou a situação como “fome catastrófica”.
E o mundo? Debate a semântica. Discute se é ou não genocídio, se é “proporcional”, se é “legítima defesa”. Enquanto isso, o tempo passa. E cada hora que passa sem comida, sem água, é uma sentença de morte para alguém que sequer empunhou uma arma.
Não se trata aqui de defender grupos armados nem de negar o direito à segurança de um Estado. Mas há uma linha que separa a defesa da punição coletiva. E a fome, usada como punição, ultrapassa todos os limites da decência, da legalidade e da humanidade.
A fome não é um acidente da guerra moderna. Ela é uma escolha. Em Gaza, como foi no Holodomor, em Leningrado, em Varsóvia, alguém toma uma decisão: este caminhão não passa. Esta plantação será destruída. Esta criança não comerá.
E o silêncio? O silêncio é cúmplice. Governos poderosos hesitam, as Nações Unidas emitem notas, a mídia alterna entre manchetes e distrações. Mas a fome continua. Invisível aos olhos bem alimentados, barulhenta apenas nos corpos que desfalecem.
De tempos em tempos, imagens conseguem furar essa bolha. Uma menina chupando um pano molhado com açúcar. Um pai segurando uma garrafa d’água como se fosse um troféu. Um menino dizendo que sonha em comer um ovo. Mas imagens não bastam. É preciso nomear a fome como ela é: uma arma. E exigir que ela seja destruída.
A história, dizem, julga os vencedores. Mas talvez o maior julgamento não seja contra os que impuseram a fome, mas contra os que assistiram em silêncio. Quantas vezes mais será necessário que civis gritem por pão para que entendamos que guerra não pode tudo?
Se a humanidade ainda quiser merecer esse nome, precisa se insurgir contra toda forma de guerra que transforme comida em munição e água em privilégio. Porque enquanto o direito de se alimentar for negado, não há paz possível, nem justiça autêntica.
E, um dia, quando esse conflito for apenas mais uma página em um livro de história, os nomes daqueles que morreram de fome talvez não estejam listados. Mas estarão, para sempre, gravados no vazio que deixaram. E será tarde demais para dizer que não sabíamos.