Me chamem de Senhora

Por: Antonio Henrique Couras;

Vi, outro dia, uma notícia de que um museu britânico havia tomado a decisão de, de certa forma, “corrigir” um erro histórico. Passou a chamar o imperador Heliogábalo de ela. Não era uma dessas manchetes de internet, feita só para fisgar cliques. Tratava-se de decisão oficial de curadoria: etiquetas impressas, vitrine reluzente, bustos de mármore e moedas romanas acompanhadas da palavra “ela”.

Heliogábalo (também chamado Elagábalo) nasceu em 204 d.C., na Síria romana, e governou como imperador entre 218 e 222 d.C., até ser assassinado aos 18 anos. Seu reinado foi curto, mas ficou marcado por relatos de extravagância, excentricidade e escândalos que chocaram a elite romana. Ele se tornou imperador ainda adolescente, apoiado pela avó Júlia Mesa, que o usou como peça política na disputa pelo trono após a morte de Caracala.

Os relatos mais famosos sobre Heliogábalo vêm principalmente de Cassius Dio, Herodiano e da História Augusta (uma coleção de biografias de imperadores romanos, escrita provavelmente no fim do século IV, repleta de anedotas e invenções pouco confiáveis; ainda assim, é uma das poucas fontes que sobreviveram sobre esse período, razão pela qual os historiadores a utilizam com cautela). São fontes hostis, escritas por inimigos políticos, cheias de sarcasmo e exageros. Mesmo assim, vários pontos aparecem repetidamente.

Segundo essas crônicas, Heliogábalo costumava vestir-se e maquiar-se como mulher, tanto em público quanto em privado, e chegou a pedir para ser tratada por pronomes femininos, preferindo ser chamada de senhora em vez de senhor. Assumia-se como “esposa” ou “rainha” de seu amante Hierocles, um cocheiro que conquistara seu afeto, e, de acordo com Cassius Dio, chegou até a oferecer grandes quantias de dinheiro a médicos que fossem capazes de realizar uma cirurgia que lhe conferisse órgãos genitais femininos, um gesto que muitos estudiosos interpretam como indício de uma identidade transgênero na Antiguidade.

É verdade que essas fontes antigas são tudo, menos confiáveis. Cassius Dio escrevia com a tinta do sarcasmo, interessado em ridicularizar uma imperatriz que não se encaixava no molde masculino da política. A História Augusta, cheia de anedotas, era mais fofoca do que arquivo. Ainda assim, entre as mentiras e exageros, fica o eco de um pedido: não me chamem de senhor, chamem-me de senhora.

Foi esse eco que o museu decidiu ouvir. Em meio a bustos severos e moedas de prata, escolheu dar espaço ao sussurro de uma identidade. Não é pouca coisa. Museus costumam ser lugares de silêncio, e nesse silêncio, cada palavra gravada em uma etiqueta pesa mais do que bibliotecas inteiras. Colocar “ela” na plaquinha é dar a Heliogábalo um lugar diferente do que a tradição insistiu em lhe negar.

E, no entanto, a reação foi imediata: acusaram o museu de anacronismo, de projetar categorias modernas em figuras antigas, de confundir história com militância. Talvez. Mas também não é anacrônico continuar chamando de “ele” alguém que teria pedido o contrário? Não é igualmente arbitrário escolher ignorar o testemunho de que quis ser tratada como mulher? A história, afinal, não é um dado congelado: é uma série de escolhas feitas a cada nova leitura.

A decisão de chamar Heliogábalo de “ela” não resolve a controvérsia acadêmica. Mas inaugura um espaço de respeito. E respeito, no fim, é também método histórico. Não muda os fatos, mas nos obriga a olhar para eles sem transformar pessoas em caricaturas.

Talvez por isso a notícia tenha me comovido. Porque ela não fala apenas de Roma, mas de nós mesmos. Quantas vezes também fomos nomeados de forma errada? Quantas vezes tivemos que nos conformar a etiquetas que não correspondem ao que somos? Um apelido cruel na infância, um cargo que não reflete nosso trabalho, uma palavra que nos reduz quando poderíamos ser descritos por muitas outras. Palavras são bússolas. Se apontam para o lugar errado, passamos a vida nos procurando.

Penso também no poder das moedas. Gosto delas porque condensam propaganda e rosto, Estado e indivíduo. Circularam de mão em mão na Roma antiga como lembretes de quem governava. No metal, Heliogábalo aparece como imperador, porque o molde oficial não admitia alternativas. Mas o que as fontes nos dizem é que, por baixo da cunhagem, havia um desejo mais íntimo, mais insistente. Entre o golpe do carimbo e o pedido da pessoa, abriu-se uma fresta — e por essa fresta escapou uma identidade.

A controvérsia que cerca Heliogábalo mostra o quanto nossa leitura do passado é sempre também uma leitura do presente. O que antes era ridicularizado como excentricidade, hoje pode ser entendido como a expressão de uma identidade de gênero. Isso não significa que a Antiguidade tivesse a mesma concepção de “transexualidade” que temos agora. Mas significa que os gestos de viver para além das convenções existiram sempre. O vocabulário muda; a ousadia de existir, não.

Heliogábalo foi morta jovem, vítima não apenas de intrigas palacianas, mas também de uma memória que a perseguiu por séculos. Seus detratores fizeram de sua figura um símbolo da decadência romana. Pintaram-na como caricatura, como aberração, como escândalo. Mas é curioso notar: justamente aquilo que foi usado para difamá-la — sua maneira de vestir, sua recusa em ser nomeada como homem — é hoje o que lhe devolve dignidade. O insulto envelheceu. O pedido permaneceu.

E é aqui que a decisão do museu ganha sua força simbólica. Não se trata de reescrever a história como se fosse um romance, mas de reconhecer que a história é feita de fragmentos. Se entre esses fragmentos há o pedido de uma pessoa para ser chamada de senhora, por que não atender? Não perderemos nada ao fazê-lo; mas ganharemos uma conversa mais justa com o passado.

Penso, enfim, que talvez esse seja o maior mérito da decisão: lembrar-nos de que a história não é estática. É diálogo. E num diálogo, podemos escolher de que lado da conversa ficamos. Entre perpetuar a voz dos inimigos de Heliogábalo e acolher o eco de sua própria voz, o museu optou pela segunda alternativa. Não apagou os fatos, mas ofereceu um espaço para que a dignidade também tivesse lugar na vitrine.

Voltei a pensar na notícia ao longo do dia. Como seria se, daqui a dois mil anos, alguém tivesse apenas fragmentos da nossa vida para reconstruir nossa identidade? Talvez uma foto de documento, uma mensagem truncada, um recibo de cartão de crédito. Quantos erros poderiam ser cometidos a nosso respeito! Não é de se espantar que o mesmo tenha acontecido com Heliogábalo. Ainda assim, se em meio ao entulho alguém encontrasse um pedido claro — “me chamem de senhora” —, não seria justo atendê-lo?

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