A roda dos enjeitados

Imagens de divulgação/internet

Por: Antonio Henrique Coura;

Nas minhas andanças pelas notícias do mundo, me deparo, não pela primeira vez, com iniciativas, em países desenvolvidos, de hospitais ou igrejas que instalam engenhocas para que recém-nascidos possam ser entregues aos cuidados dessas instituições preservando o anonimato daqueles que ali o deixaram.  E eu, uma criança que assistia todas as novelas de época da Globo suspiro “Ressuscitaram a roda dos enjeitados!”

Símbolo de um passado que julgamos distante, foi uma invenção medieval destinada a oferecer uma alternativa para mães desesperadas. Eram cilindros giratórios instalados em conventos ou igrejas, permitindo que bebês indesejados fossem deixados anonimamente, sem necessidade de encarar a reprovação social ou os olhares inquisidores da época.

Deixava-se a criança e, com um giro discreto, ela desaparecia da vista, entregando-se ao destino incerto que os religiosos e a caridade poderiam proporcionar. Aquilo que era um ato de misericórdia individual tornou-se, com o passar dos séculos, um símbolo sombrio das falhas coletivas de uma sociedade incapaz de oferecer suporte a quem mais precisava.

No entanto, o que parecia ser uma página virada da história ressurgiu no século XXI. Alguns países, como Alemanha e Japão, reintroduziram versões modernas da roda, agora chamadas de “caixas de bebês” ou “berços anônimos”. A justificativa era humanitária: melhor oferecer uma alternativa segura do que permitir que recém-nascidos fossem abandonados em lixeiras ou ruas. Esse retorno, contudo, não deixa de ser um reflexo doloroso das lacunas persistentes em questões de planejamento familiar, acesso a métodos contraceptivos e a ausência de políticas eficazes de apoio social.

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Em pleno século XXI, ainda há um número assustador de mulheres que enfrentam gestações indesejadas, muitas vezes em contextos de extrema pobreza, violência ou abandono. O uso de métodos contraceptivos, embora amplamente divulgado em países desenvolvidos, continua inacessível ou estigmatizado em diversas regiões do mundo. O preço de um anticoncepcional ou a falta de informação sobre como utilizá-lo ainda são barreiras insuperáveis para muitas. Além disso, em algumas culturas, a contracepção é vista como tabu ou até mesmo como uma afronta a valores religiosos, perpetuando ciclos de gravidez não planejada e sofrimento.

Os avanços no campo do planejamento familiar, por mais promissores que sejam, enfrentam resistência política e cultural em várias frentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a recente decisão da Suprema Corte de reverter o caso Roe v. Wade, que garantia o direito ao aborto legal em todo o país, foi um golpe significativo para os direitos reprodutivos das mulheres. Estados inteiros passaram a proibir ou restringir severamente o acesso ao procedimento, levando muitas mulheres a buscar alternativas clandestinas, perigosas e desumanas. Essa retrocessão demonstra que, mesmo em uma das nações mais ricas do mundo, os corpos das mulheres continuam sendo campo de batalha para debates morais e ideológicos.

Esse cenário nos obriga a refletir: por que, em um mundo tão avançado tecnologicamente, ainda enfrentamos desafios tão básicos? A resposta pode estar na negligência histórica de questões de gênero e na incapacidade de muitos governos de abordar a sexualidade e a reprodução como partes centrais do bem-estar humano. É como se os avanços científicos e sociais ainda estivessem presos por fios invisíveis, que os puxam para trás sempre que uma sociedade tenta avançar.

A roda dos enjeitados moderna é, em parte, uma solução emergencial para evitar tragédias maiores. Mas também é um lembrete cruel de que falhamos em atacar as raízes do problema. Um bebê deixado anonimamente em uma caixa representa mais do que a incapacidade de uma mãe em criá-lo. Ele reflete o fracasso de um sistema que deveria ter apoiado essa mulher desde o início: oferecendo educação sexual de qualidade, acesso a métodos contraceptivos eficazes, políticas de apoio à maternidade e alternativas seguras em caso de gestações indesejadas.

O impacto dessas falhas vai além do indivíduo. Quando uma sociedade não oferece suporte básico às mães e crianças, ela cria um ciclo de vulnerabilidade que afeta gerações. Crianças abandonadas frequentemente enfrentam dificuldades emocionais e sociais, crescendo em orfanatos ou sistemas de adoção que nem sempre têm os recursos necessários para proporcionar um ambiente saudável. Em muitos casos, essas crianças acabam repetindo os ciclos de pobreza e exclusão que levaram ao abandono inicial.

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Por outro lado, há exemplos de políticas públicas que tentam romper com essa lógica. Países como a Holanda e a Noruega investem pesado em educação sexual desde cedo, fornecem contraceptivos gratuitos e oferecem apoio integral às mulheres durante a gravidez e após o parto. Esses esforços não apenas reduzem drasticamente os números de gestações indesejadas, mas também criam uma cultura de respeito e empoderamento feminino.

No entanto, esses modelos ainda são exceções em um mundo dominado por desigualdades. Em países em desenvolvimento, a falta de recursos básicos como educação e saúde pública torna a ideia de planejamento familiar um privilégio inalcançável. E mesmo em nações mais ricas, políticas regressivas e discursos conservadores continuam a colocar em risco os avanços conquistados ao longo do último século.

O ressurgimento da roda dos enjeitados no século XXI é um grito silencioso de socorro de uma sociedade que ainda não conseguiu resolver as questões mais elementares da vida humana. É um lembrete de que, por trás de cada bebê deixado em uma caixa anônima, há uma história de sofrimento, abandono e desamparo que poderia ter sido evitada. Mais do que nunca, é urgente que governos, organizações e indivíduos se unam para criar um mundo onde nenhuma mãe precise recorrer a essa alternativa e onde todas as crianças possam crescer com dignidade e amor.

E, talvez, essa seja a verdadeira lição que a roda dos enjeitados nos oferece: não basta criar soluções paliativas para problemas que são profundamente estruturais. É preciso coragem para enfrentar tabus, derrubar barreiras e construir uma sociedade que valorize a vida em todas as suas formas – desde a mulher que escolhe não ser mãe até a criança que merece um futuro digno. Só assim poderemos, enfim, reinventar essa roda.

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