Não sei se o leitor já percebeu que apesar da praticidade que a tecnologia nos trouxe nos últimos tempos, tivemos que abrir mão de algumas coisas, dentre elas o prosaico charme.
Eu me dou o direito de, em muitos aspectos da minha vida, ser contraditório. Me visto como um senhorzinho de bem vividos oitenta anos de idade (isso desde os 6), enquanto mantenho minha mente e meus pensamentos os mais progressistas possíveis. Decoro minha casa com as quinquilharias que encontro em leilões, muitas delas com pelo menos o dobro da minha idade, contudo, não vivo como se vivia quando essas peças eram novas. Graças a Deus!
Lembro-me de, na faculdade, na disciplina de Sociologia Jurídica, estudarmos os textos de Sérgio Buarque de Holanda sobre a “modernização do arcaico e arcaicização do moderno”.
Com o auxílio dos textos, nosso professor nos explicava que, no Brasil, ao contrário de vários outros países, por não passarmos por revoluções burguesas, por exemplo, os antigos barões do café do século XIX tornaram-se os novos industriais do século XX.
Ao invés de haver a “deposição” da elite cafeeira por uma burguesia industrial, modernizamos nossas elites por uma transição para a indústria, ao mesmo tempo que essa moderna indústria era arcaicizada pela dinâmica escravocrata latifundiária dos séculos anteriores.
E acredito que essa modernização do arcaico é meio que minha forma de viver. Tento alinhar o frenesi da minha mente e de meu tempo com a calma e, às vezes, pouca praticidade de coisas passadas. Queimo velas pelo simples fato de ter um encanto por elas, mas isso me faz ter de lidar com respingos de cera, polir os castiçais de bronze. Uso frequentemente o famosíssimo “Óleo de Peroba” (que tem tudo menos óleo de peroba) para manter a madeira de duas poltronas que me recuso a envernizar com os modernos vernizes sintéticos de alto brilho de alta resistência, pelo prazer que a madeira encerada com seu toque macio me dá. Talvez passe mais tempo do que devia na tábua de passar roupa “engomando” lençóis de linho bordado, e até minhas centenárias camisetas desbotadas. Mas enfim, manias.
Dessas manias meio arcaicas, trago uma que talvez nunca me desvencilhe apesar da infinita praticidade de suas alternativas modernas: ler livros de papel. Já me rendi às revistas e aos jornais eletrônicos. Me poupa o fato de ter uma coleção de revistas semanais acumulando poeira em algum lugar da casa e que nunca mais serão lidas, junto com uma pilha de jornais que, na melhor das hipóteses, forraria alguma gaiola de passarinho.
Os livros, contudo, me dão um imenso prazer em poder segurá-los (apesar de ter alguns calhamaços que preciso de algum suporte para me auxiliar em sua leitura), sentir seu cheiro, a textura do papel… E se você for como eu, você sabe o prazer em ler um livro com capa dura, especialmente se ele vier com uma fitinha para marcar as páginas! Nada se compara ao pequeno prazer de sentir, ao passar uma página a textura macia de um papel de maior gramatura, o conforto que os olhos sentem ao deslizar por linhas escritas em um papel levemente amarelado…
Mas mais do que a forma, o conteúdo é definitivamente o melhor de qualquer livro.
Passei vários anos acumulando e colecionando livros que tinha muita vontade de ler, mas não tinha tempo. Precisei de algumas sessões de terapia para entender que não era me privando de descanso e lazer que alcançaria meus objetivos. Assim, voltei ao meu antigo hábito de leitura.
Também precisei me despir de alguns preconceitos bobos que tinha em relação à leitura. Sempre senti que tinha uma deficiência cultural enorme, então logo após ser mordido belo bichinho da leitura, saí dos meus livros de fantasia da adolescência e migrei para afanar (e depois expandir) a coleção de clássicos de minha mãe, contando, inclusive com a indicação de alguns títulos sugeridos pela minha avó.
Acho que naquele período, mais de dez anos atrás, formei muito do meu gosto e alicercei muitas coisas do meu modo de pensar e ser. Apesar de ter lido apenas uma vez, Os Miseráveis, de Victor Hugo, me vem à mente quase diariamente. Me lembro das bondades do Monsieur Bienvenu, da generosidade de Jean Valjean… A cena de Emma colocando suas luvas sobre a taça de vinho para dizer que não bebia, em seu único baile, e o estado de choque que fiquei ao terminar de ler Madame Bovary…
Logo em seguida a esse período comecei a ler livros técnicos que tratavam sobre o processo de estabilização de fronteiras, pensamento filosófico do século XX… e ali comecei a me sentir sobrecarregado com a obrigação autoimposta de estar sempre produzindo e aprendendo.
Então, mais uma vez (agora já com os efeitos de vários anos de terapia), decidi que voltaria a ler livros pelo simples prazer de lê-los. Mas a tarefa não era mais tão fácil como outrora fora.
Depois de me formar lendo livros considerados “clássicos”, não me contento mais com qualquer leitura “meia boca”. Até os clássicos de Júlio Verne tornaram-se maçantes para mim.
Sempre a mesma história de um herói cruzando alguma paisagem exótica numa aventura e salvando uma mocinha indefesa no caminho. É verdade que sempre é encantador ver o pensamento do que seria o “futuro” pensado por esse gênio, como, por exemplo, a possibilidade de a sociedade evoluir para morar num mundo subterrâneo e ter como matriz energética o carvão mineral. Não sei você, mas para mim, viver em uma mina de carvão está mais para distópico do que para utópico.
Assim dediquei meu lazer, inicialmente, à biografias, entremeadas por alguns livros de não-ficção, e nos últimos meses redescobri a fantasia e o realismo fantástico.
Depois de vários anos sendo ensinado no espiritismo, com seu pragmatismo científico, passei por algumas situações que me fizeram ver que a linha entre o real e o fantástico é muito mais fina, se não inexistente, do que eu previamente acreditava. A leitura de “A Casa dos Espíritos” de Isabel Allende, me ajudou a fazer as pazes com a magia e a fantasia da nossa realidade.
Então, hoje, leio, sem culpa e com muito prazer, meus tickets em papel para infindáveis mundos, épocas e realidades. E indico que você também o faça. Depois de um livro, nunca voltamos a ser a mesma pessoa que éramos quando começamos a ler.