Outro dia conversava com um amigo a respeito do passado de nossas famílias. É inegável, especialmente num país como o Brasil, que termos acesso a registros históricos familiares é algo restrito a uma mínima parte da população. Digo isso por vivermos em um país com a chaga de ser o destino de milhões de pessoas escravizadas, que, há apenas algumas gerações, eram registradas apenas como bens em testamentos e inventários.
Tenho o privilégio de ter registros familiares que remontam ao século 17. Outro dia, minha mãe, em suas pesquisas, encontrou registros da família de meu pai que remontam ao último quartel do século 19. Inevitável me dar conta que meu antepassado que chegou em terras paraibanas e adquiriu vastas extensões de terras que até hoje, em parte, ainda permanecem sob a propriedade de sus descendentes só o fez por um princípio jurídico que visava impedir que pequenos produtores e, posteriormente, escravos libertos pudessem vir a possuir terras.
Em 1850 era promulgada, por D. Pedro II, a lei que dali em diante estabeleceu o Brasil como um país de latifúndios. Mas para entendermos o que a Lei de Terras alterou, é preciso que entendamos como era a dinâmica fundiária no país. Até então, o que se dava no Brasil, como em boa parte da Europa, era que a terra não era um bem como entendemos hoje. Era uma concessão de posse e uso dada pela Coroa.
Na Europa, os famosos títulos de nobreza eram dados atrelados a terras. Os Marqueses eram responsáveis pelas “Marcas”, as divisas e fronteiras do Reino, por exemplo. Hoje, títulos como o inglês “Príncipe de Gales”, o espanhol “Princesa de Astúrias”, ou o defunto português “Príncipe do Brasil”, não eram meros títulos honoríficos, mas sim direitos de posse de grandes extensões de terras que começavam com os Príncipes Reais e iam até os Barões. E a cada um desses nobres era dada a responsabilidade de gerir e proteger as terras a eles concedidas.
No caso brasileiro, apesar de a lei ser similar, a extensão territorial impedia a própria exploração do território. Inicialmente, através das capitanias hereditárias, que eram essas concessões de terras dadas pela coroa portuguesa, e, em seguida, as sesmarias, que eram uma espécie de “subconceção”, em que os capitães donatários, cediam, por sua vez, extensões de terras que deveriam ser exploradas e protegidas. O sistema que funcionara no continente europeu por milênios, não floresceu no Brasil.
Nossas terras eram extensas demais para serem domadas, e seus habitantes nativos nunca aceitaram pacificamente a invasão europeia de suas terras. Assim, devido às dimensões territoriais, e temporais (a hereditariedade do título de posse sobre tais terras permitia que gerações coabitassem no mesmo território, o que gerava conflitos lindeiros que observamos até hoje com as disputas hereditárias mesmo dos espólios mais ínfimos), a questão fundiária era sempre uma questão de disputas, principalmente entre vizinhos.
Ainda como hoje, devido à incapacidade dos sesmeiros de explorarem, cuidarem, protegerem e, principalmente, demarcarem toda extensão de suas terras, assentamentos de posseiros eram comuns. Para além, com a expansão do território rumo a oeste, ultrapassando, em certos momentos, limites coloniais, a situação fundiária entrava mais ainda numa, literalmente, “Terra de Ninguém”.
Apesar de não terem sido frutos de doações da coroa ou de seus subordinados, ainda estavam nos limites do Império. O que fazer?
E aqui acredito ser fundamental termos em mente que, não diferente de hoje, não eram apenas pequenos produtores, ou mesmo pessoas pobres que se valiam da posse irregular de terras. Ricos produtores rurais se valiam do mesmo instituto e nessas terras produziam as grandes fortunas desse país.
Ainda a quase 40 anos da abolição da escravidão no país, talvez os legisladores não tivessem em mente a futura questão racial no país, contudo, a questão econômica sempre foi muito clara. Como se pode observar nos arquivos do Senado Federal em Brasília, a questão, ao ser discutida por parlamentares, que também viviam da exploração agrícola latifundiária, sempre pendeu para a concessão dos títulos das terras aos grandes proprietários.
Para o senador Vergueiro (MG), o problema eram apenas os pequenos posseiros:
— Se não se puser obstáculo a essas invasões, apenas restarão algumas terras devolutas nas províncias do Pará, de Mato Grosso e de Goiás [as atuais Regiões Norte e Centro-Oeste inteiras]. Para as mais, acabam-se em poucos anos. E será isso útil? Não, é prejudicialíssimo não só aos interesses do Tesouro, mas da civilização, porque essa gente espalha-se pelo meio do sertão e barbariza-se, não reconhece autoridades senão as suas paixões.
O senador Carneiro Leão (MG) concordou. Na visão dele, apenas os grandes posseiros eram dignos da proteção pública:
— Em presença da inércia, do desleixo do governo, a população cansou-se de esperar e entrou sem mais cerimônia pelas terras da nação, prestando assim um verdadeiro serviço ao país, pois contribuiu para o aumento e progresso da lavoura. Não se pense que todas as posses se reduzam a uma pequena roça e à construção de uma casinha de palha. A princípio podia ser assim, mas depois em boa parte delas estabeleceram-se grandes plantações.
A partir da promulgação da lei, estabeleceu-se que as terras, dali em diante, seriam adquiridas apenas através de títulos de compra e que haveria uma anistia geral entre os produtores rurais. Os sesmeiros que não tinham cumprido o seu dever de cultivar a terra receberiam o perdão real, e os posseiros que exploravam a terra receberiam o título desta. Não diferente da “regulação fundiária” que hoje acontece em grandes extensões de terras invadidas na Amazônia.
Na prática, contudo, foram agraciados com as benesses da nova lei apenas os grandes proprietários, o que gerou a questão fundiária brasileira que conhecemos hoje, baseada indiscutivelmente em latifúndios.
Talvez, nós descendentes desses proprietários de terra, desses legisladores, individualmente falando, tenhamos pouco o que fazer. Os patrimônios se diluem com o passar do tempo, os meios de produção mudam, fortunas somem. O que nós continuamos a usufruir, contudo, é de um lugar na sociedade brasileira que foi escavado para nós. Há séculos que nossas famílias fazem o que podem e o que não podem para que o status quo não mude. Ainda que não sejamos mais exportadores de café, grandes produtores de açúcar ou que não tenhamos incontáveis cabeças de gado, temos, em quase nossa totalidade, acesso a saúde, moradia, educação e, assim, nos mantemos como uma das camadas mais privilegiadas da sociedade no século 21.
Por mais cristão que possa ser, doar todos os nossos bens e abrirmos mão de nossos privilégios, não resolveria o problema da pobreza e desigualdade no país, contudo, usarmos o lugar que ocupamos para que sejamos vozes ativas na mudança na dinâmica social brasileira e que, finalmente, aqueles que foram sistematicamente excluídos dos ambientes de tomada de decisão possam tomar seus lugares e terem suas vozes ouvidas. A cada geração ou indivíduo cabe uma missão, e a nossa, creio, seja de reparar, da forma que pudermos, os feitos de nossos antepassados.
Fonte Consultada: Agência Senado