Há exatos cem anos, no mês de novembro de 1922, falecia no Rio de Janeiro um dos maiores escritores brasileiros. A notícia, publicada no jornal carioca “A Noite”, afirmava que a sua morte já era esperada “pois que, de havia mezes, elle apresentava serios sympthomas de grave enfermidade, a que concorria a sua indole irreprimivelmente bohemia” e a matéria do jornal acrescentava que o falecido era:
“o verdadeiro escriptor typico do nosso povo, o impressionista admiravel da vida deste Rio de Janeiro, onde elle nasceu e de onde nunca saiu, o psychologo carregado e amargo das nossas ruas, dos nossos bairros pobres e de certos typos victoriosos e dominadores do nosso meio, que eram retalhados em complascencia pela sua ironia acre”.
Em crônica publicada no jornal “O Paiz”, Enéas Ferraz escreveu: “Esse mestre do romance brasileiro, que a morte acaba de levar, era um mulato sujo e borracho que os literatos, quando estavam na Avenida, fingiam em não o ver passar”.
Câmara Cascudo, que havia conhecido, em 1919, o escritor desaparecido acrescentou: “Affonso Henriques de Lima Barreto, nome bonito, sonoro, aristocrático, evocador. Parece esperar o subsequente título nobiliárquico. O titular era mulato, feio e pobre”.
Na noite do Natal de 1919, se repetiu um episódio que ocorrera cinco anos antes. Lima Barreto vagara em delírio pelas ruas do subúrbio de Todos os Santos e tivera que ser levado em um carro da polícia para um Hospício. O escritor tinha 38 anos na ocasião. O médico do manicômio que o examinou anotou na sua ficha:
É um indivíduo precocemente envelhecido, de olhar amortecido, facies de bebedor […] Perfeitamente orientado no tempo, lugar e meio, confessa desde logo fazer uso, em larga escala, de parati, compreende ser um vício muito prejudicial, porém, apesar de enormes esforços, não consegue deixar a bebida. Por este abuso já passou certa vez três meses no Pavilhão, o que, entretanto, nada adiantou, voltando desde a saída a embriagar-se […]
Indivíduo de cultura intelectual, diz-se escritor, tendo já quatro romances editados, e é atual colaborador da “Careta”.
Dessa segunda internação, Lima Barreto se aproveitou para escrever o “Diário do Hospício” e o romance inacabado “Cemitério dos vivos”, que foram reunidos numa edição única com um alentado prefácio do professor Alfredo Bosi. Em uma das anotações do “Diário”, Lima Barreto escreveu:
“De mim para mim, tenho certeza de que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há seis anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro”
Ficha do Hospital Nacional de Alienados
Nos seus últimos tempos de vida, Lima Barreto pouco saía de casa. Segundo Francisco de Assis Barbosa, seu primeiro biógrafo e o responsável pelo renascimento da obra do escritor nos anos 1950: “O álcool, que lhe consumira todas as energias vitais, estava por terminar a sua obra de devastação. Minara-lhe todo o organismo. Sentia-se esgotado, a caminho do aniquilamento total. Já não produzia como antigamente. Rendia-lhe pouco o esforço de dias, semanas, meses inteiros preso nas quatro paredes do seu quarto de dormir”.
Em seu romance “Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá”, Lima Barreto fez o narrador afirmar que “para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu; como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte, e como Ela o abraçou”. O escritor morreu na cama, em sua casa no subúrbio de Todos os Santos, segurando nas mãos um exemplar de uma revista literária francesa.
O poeta Pereira da Silva, natural de Araruna e o primeiro paraibano a ingressar na Academia Brasileira de Letras, se dirigia ao velório de Lima Barreto quando encontrou um transeunte “cabisbaixo, trazendo um ramalhete de perpetuas” que, também, ia para a residência do falecido. Em artigo para ‘A Noite”, Pereira da Silva relatou o ocorrido:
“Acompanhei-o […] Fizemos o percurso em silencio e quando transpuzemos a sala em cujo centro jazia o cadaver, o homem correu a espalhar no caixão, votivamente, aquellas perpetuas de um roxo tão expressivo. Depois, mal contendo a commoção, descobriu-lhe o rosto, beijou-o na testa, que ainda recebeu algumas lagrimas. Uma pessoa da familia dirigiu-se ao visitante. Quiz saber quem elle era.
– Não sou ninguem minha senhora. Sou um homem que leu e amou esse grande amigo dos desgraçados”. (“A Noite”, 7 de novembro de 1922).
O enterro de Lima Barreto teve um cortejo formado por personagens que pareciam ter saído das páginas que ele escreveu, como relatou Enéas Ferraz na crônica “A morte do Mestre:
“A’ tarde, o enterro saiu, levado lentamente pelas mãos dos raros amigos que lá foram. Mas, ao longo das ruas suburbanas, de dentro dos jardins modestos, ás esquinas, á porta dos botequins, surgia, a cada momento, toda uma ‘foule’ anonyma e varia que ia se incorporando atrás do seu caixão, silenciosamente.
Eram pretos em mangas de camisa, rapazes estudantes, um bando de crianças da vizinhança (muitos eram afilhados do escriptor), commerciantes do bairro, carregadores em tamancos, empregados da estrada, botequineiros e até borrachos, com o rosto lavado em lagrimas, berrando com o sentimentalismo assustado das crianças, o nome do companheiro de vicio e de tantas horas silenciosas, vividas á mesa de todas essas tabernas […]
E, assim, chegou-se á plataforma da pequena estação de Todos os Santos, onde durante uma meia hora, o seu corpo ficou depositado, á espera do trem. Depois, dentro do vagão mortuario, o autor de ‘Isaias Caminha’ atravessou, pela ultima vez, aquelle suburbio que elle conhecia e amava – todo o suburbio da sua obra. A’ gare da Central outros amigos o esperavam. Eram poucos, mas eram sinceros […] e muitos amigos anonymos, talvez os seus simples leitores, rapazes novos, antigos condiscipulos de Lima Barreto na Escola de Engenharia, velhos desconhecidos que falavam commovidamente sobre a infancia do grande romancista, rapazes jornalistas, velhos reporters da imprensa carioca, photographos, editores […]
Posto o caixão em um carro funebre de 3ª classe, dois ou tres ramos de flores aos cantos, e o enterro partia, seguido do seu pequeno cortejo, a caminho do S. João Batista, onde Lima Barreto queria ter a sua cova, que foi toda a sua vaidade.
Nunca viveu entre os bairros aristocraticos, nem nunca foi recebido nos seus salões, mas quis dormir o seu somno immortal no cemiterio de tão bellos marmores, entre a fidalguia triste dos altos cypestres. E é lá, justamente, junto á encosta da montanha, que elle repousa” (O Paiz, 22 de novembro de 1922).
Revista Cigarra, 1919, Biblioteca Nacional
Apesar da figura de Lima Barreto ter sido rememorada, há cinco anos, pela publicação da alentada biografia “Lima Barreto – Triste Visionário”, escrita pela historiadora Lilia Schwarcz, pela encenação da peça “Traga-me a Cabeça de Lima Barreto”, de Luiz Marfuz, e ter sido o escritor homenageado na Feira Literária Internacional de Paraty, a passagem do centenário da morte do grande romancista brasileiro foi praticamente ignorada no país.
Fonte: Fotos Divulgação/Internet