Devo admitir que o exercício de futurologia, que é necessário para o estudo de ciências políticas e econômicas, me é enormemente desagradável. Estudando história, sempre nos deparamos com a pergunta “o que causou tal ou qual evento?”. Impossível se dizer. O ser humano e suas ações raramente são previsíveis ou justificáveis. A Primeira Guerra Mundial teria se iniciado sem a morte do Arquiduque Ferdinando? Ou, ainda, o tal assassinato poderia ter ocorrido sem gerar um conflito, inicialmente, continental e depois global? Impossível responder.
A mesma dificuldade encontro em fazer análises de conjuntura que se proponham a analisar o futuro. Em 2019 ninguém imaginava que uma pandemia assolaria o planeta e que mudaria de forma irreversível o mundo em que vivemos. Também é impossível se afirmar o que acontecerá nos próximos 5, 10 ou 15 anos. A Rússia não tinha uma causa para invadir a Ucrânia. A guerra que vivemos hoje, com todas as suas implicações globais, teria sido um evento facilmente evitável. Não houve estopins, revoluções ou quaisquer outras justificativas para a ação humana. Contudo, a ação humana não precisa de razões, apenas de vontade.
Nesse diapasão, vejo ora com temor, ora com esperança o futuro. Já falei a respeito das dinâmicas econômicas vigentes aqui neste espaço, contudo, o que nos aguarda? Hoje vivemos uma retração de direitos trabalhistas como nunca antes vista. Trabalhamos cada vez mais horas, para cada vez mais pessoas ou empresas e, assim, vivemos cada vez pior. Hoje jornadas de trabalho sem horas estabelecidas, com vínculos empregatícios inexistentes e nenhuma segurança social, ou mesmo física, ao trabalhador são uma realidade. A realidade do início da revolução industrial parece estar cada vez mais sendo reinventada em nossos tempos. Hoje não precisamos nos preocupar em perder dedos nos teares mecânicos, nos preocupamos com lesões por esforço repetitivo causadas por horas e horas passadas na frente de um computador. Não vivemos, como os trabalhadores de romances de Dostoievski, quase cegos pelas horas costurando à luz de velas; nossos olhos, contudo, estão cada vez mais debilitados devido às horas que passamos diante das telas. Não temos mais horário para o trabalho, nem lugar.
Muitos veem com olhos românticos demais para o meu gosto essa situação. Uns acham fantástico fazer seus próprios horários, poder trabalhar em casa… O problema é que sem um horário determinado, acabamos trabalhando o tempo todo. O trabalho em casa, que se tornou uma realidade incontornável com a pandemia, evita gastos com o deslocamento, com roupas etc. Entretanto, a falta de uma separação entre os ambientes profissional e íntimo faz com que o mundo profissional tome conta também do nosso mundo íntimo.
Responder mensagens de chefes e colegas de trabalho fora do horário de trabalho se tornou prática comum. Se pensarmos no passado, receber uma ligação do seu chefe em casa ou telefonar para algum subordinado fora do horário de trabalho, era algo quase impensado dez ou vinte anos atrás. A necessidade de espaços de trabalho nas casas era reservada a um número ínfimo de profissionais, em sua maioria, liberais. Talvez você encontrasse tal cômodo na casa de algum advogado ou contador. O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como professor universitário, sempre trabalhou na mesa da sua sala de jantar. Hoje, contudo, trabalhar em casa virou uma necessidade fundamental. O que é ótimo para as empresas. Sem gasto com vale transporte, custos de aluguel de espaços, energia ou manutenção dos escritórios. Adivinha quem passou a bancar estes custos? O próprio trabalhador.
Além disso, a mecanização, inteligência artificial e tantas outras inovações tecnológicas tornaram, ou tornarão, obsoletas inúmeras profissões e gerarão um mar de desempregados. Cada vez mais as empresas lucram e cada vez a vida do trabalhador piora. Não sei se ainda existe quem acredite na “mão invisível do mercado” que regularia essas relações enormemente desiguais, contudo, há esperança. O Estado, por mais que seja pintado como vilão e guardião inepto da coisa pública, pode ser, e é, uma resposta fundamental no que se refere à essa dinâmica.
Se fizermos uma digressão histórica, veremos que a origem dos impostos reside numa divisão da sociedade em estamentos. Historicamente a sociedade era dividida entre aqueles que rezam, o clero, aqueles que lutam, a nobreza, e aqueles que trabalham, no caso todos nós. Os impostos foram a forma encontrada para o chamado “terceiro estado”, ou seja, aqueles que trabalham, pagarem à nobreza por seus serviços de segurança, e ao clero pelos seu serviço de salvar almas.
Muito se fala do período feudal ou, ainda, do absolutismo, como períodos em que uma multidão de trabalhadores sustentava uma pequena elite. Contudo, o conceito de o governante ser responsável pela administração do seu território é relativamente recente. Por grande parte da história, à nobreza competia a responsabilidade de proteger o povo de invasões de outros povos e administrar a justiça. Apenas. A construção de hospitais, escolas e tantas outras instituições eram responsabilidade da Igreja, e não entendamos responsabilidade, aqui, como um dever; estas obras eram obras de caridade, mantidas pela igreja. Não eram obrigações, mas sim beneficências.
A própria construção e manutenção de estradas, fundamentais principalmente para o comércio, era de responsabilidade de comerciantes que desejavam utilizá-las. Quando construídas por governantes, se propunham ao escoamento de produtos destinados ao enriquecimento da fazenda real, ou, ainda, à passagem de exércitos.
Contudo, com as revoluções burguesas que se deram a partir do final do século 18, a pessoa do governante não mais se confundia com o Estado. Luís XIV era o Estado, o presidente da França, contudo, é mero administrador. Assim, com a extinção da nobreza e com a substancial diminuição do poder do clero, o Estado se reinventou.
Impostos sempre foram uma contrapartida, e isso não se alterou com a transição do poder. Contudo, sem as instituições prévias, novas instituições deveriam ser fundadas. O Estado deveria possuir um exército próprio, não necessariamente vinculado à pessoa do governante; a igreja, por sua vez, não era mais a única responsável pelo bem estar da população; e, além, com a burguesia no poder, se fez fundamental que o novo Estado proporcionasse as condições necessárias para o desenvolvimento econômico.
Não sejamos ingênuos, as revoluções burguesas nunca objetivaram a democracia, ou os direitos do povo, elas objetivavam colocar “os que trabalham” no poder. Não era mais Deus quem apontava o governante, mas o dinheiro. Desde então o Estado passou a ser um meio de crescimento para a burguesia. Só uma coisa não mudou: os pobres eram aqueles que mais trabalhavam e mais pagavam.
O chamado liberalismo econômico, previa que o estado não deveria fazer nada para controlar o mercado, e o mercado seria capaz de gerar riquezas e essas seriam distribuídas para todos. Contudo, em 1880, na Alemanha, começou-se a perceber que o mercado não se regularia tão simplesmente e que a riqueza precisava de um “incentivo” para permear todas as camadas da sociedade.
Quase 150 anos depois estamos nós aqui mais uma vez vendo que a mão invisível do estado está nos mostrando o dedo do meio. Chega a ser ridículo que com tamanhas inovações tecnológicas que geram tanta riqueza e facilitam enormemente a vida do trabalhador, precisemos explicar que a concentração dessa riqueza e precarização da vida laboral são incitáveis.
Uma vez mais precisamos que o Estado se mova para que a riqueza, que cada dia mais aumenta, chegue até nós. Como? Bem, a solução é antiga: os impostos. Muito se fala dos impostos, contudo, o problema, em si, não é sua existência, mas a sua aplicação.
Hoje a carga tributária mais pesada se encontra sobre aqueles que mais produzem e menos ganham. Atualmente, um assalariado pode chegar a pagar quase 30% de sua renda apenas em impostos diretos, enquanto a camada superior da pirâmide, paga menos de 5%. Uma taxação sobre a produção, sobre os lucros seria muito mais eficiente em termos de arrecadação e justiça social ao invés da atual pesada tributação sobre a renda. Trocando em miúdos, o trabalhador paga um terço do que ganha, enquanto grande parte do que seu patrão ganha não é sequer tributado.
Iniciativas como taxação sobre a produção, por exemplo, seria uma alternativa ao desemprego causado pela automação. A maior eficiência de inúmeros processos produtivos criada pela tecnologia gera mais lucro, mas também menos emprego. Hoje a riqueza se acumula na mão daqueles que produzem cada vez mais eficientemente, enquanto aqueles que perderam seus empregos sofrem com a falta de recursos.
Uma simples alteração nessa dinâmica tributária faria com que o retrocesso que vemos acontecendo pudesse ser remediado e, finalmente, o desenvolvimento tecnológico, a eficiência produtiva e a infinidade de recursos disponíveis se tornassem acessíveis a todos. Entretanto, uma readequação do sistema tributário não seria a solução de todos os males. A aplicação devida desses recursos é também fundamental. Os impostos não são um problema, inclusive são parte fundamental da solução, contudo, já está na hora de pormos um fim a essa lógica feudal em que a base da pirâmide sustenta o topo.
Historicamente, ao menos trabalhávamos para sustentar “os que lutam” e “os que rezam”, mas qual a lógica contemporânea de os mais vulneráveis sustentarem os mais fortes entre “os que trabalham” e ainda não recebermos nada em troca?
A resposta parece estar clara, e é salutar poder imaginar que o futuro não precisa ser uma sequência infindável de trabalho cada vez mais precarizado e uma vida cada vez mais difícil. Se tudo continuar como está, o futuro que nos aguarda é pavoroso, contudo, somos eleitores e temos voz. O período eleitoral está oficialmente aberto e não podemos nos dar ao luxo de ficarmos em silêncio. Precisamos nos fazer ser ouvidos: queremos uma vida digna, queremos direitos trabalhistas, queremos segurança social, queremos uma distribuição igualitária das riquezas do nosso país. O futuro não precisa ser ruim, mas nós precisamos agir já e elegermos representantes que busquem os mesmos ideais que nós, e acima de tudo o nosso bem estar e de nosso povo.