Como sempre acontece quando arquivos vedados são liberados para pesquisas, fatos e episódios são esclarecidos e sentenças que, antes, eram, aparentemente, verdadeiras, são corrigidas. Foi o que ocorreu, há cinco anos, quando o Arquivo Nacional permitiu a consulta aos documentos do famigerado Departamento de Censura e Diversões Públicas, órgão da Polícia Federal, referentes ao período da ditadura militar.
A partir do golpe militar de 1964, e com extrema intensidade após a edição, em 1968, do Ato Institucional nº5, o execrável AI-5, os governos ditatoriais exerceram um rígido controle sobre as manifestações culturais do país. Ficaram submetidos a rígida censura a literatura, o teatro, o cinema, a imprensa e, como não poderia deixar de ser, também, a música popular, pelo seu grande alcance em todas as camadas da população. Através da criação de um encorpado aparato censório, exercido pela Polícia Federal, os governos militares reprimiam as manifestações contrárias ao regime ou aquelas que eram consideradas transgressões da moral vigente.
Quando se pensa em compositores que tiveram as letras das suas músicas censuradas durante a Longa Noite dos Generais, que se estendeu por mais de duas décadas, Chico Buarque, Gonzaguinha e Geraldo Vandré são os nomes que, primeiramente, sempre são lembrados. Mas, nenhum deles teve, como Taiguara, tantas canções censuradas, ou até mesmo discos totalmente proibidos, durante o período da ditadura militar.
Embora não tenha sofrido torturas físicas Taiguara sofreu a enorme tortura intelectual de ser submetido a inúmeros vetos ao seu trabalho, que praticamente inviabilizaram a sua atividade artística, forçando-o a partir para um autoexílio, por mais de dez anos, interrompendo uma ascendente carreira como cantor e compositor, com inclusive grande sucesso popular.
Em entrevista dada ao jornal “O Pasquim” Taiguara disse que “se acostumaram a proibir, até que em 73 nada passava com meu nome”.
Taiguara Chalar da Silva nasceu em Montevidéu. Era filho de Olga Chalar, uma cantora de relativo sucesso no Uruguai nos anos 1940, que abandonou a carreira quando casou. Seu pai era o instrumentista gaúcho Ubirajara Silva, um dos poucos executantes do bandoneón no Brasil, sempre requisitado nas gravações no país que requeriam o instrumento, como na de Elis Regina em “Cabaré”, de João Bosco e Aldir Blanc.
Aos quatro anos de idade, Taiguara se mudou com a família para o Rio de Janeiro. Anos depois, com a separação dos seus pais, ele, com quinze anos, e o único irmão foram morar com o pai em São Paulo. Conforme conta seu contemporâneo de colégio, o jornalista Tárik de Souza, muito cedo Taiguara começou a participar do movimento musical paulistano originário da bossa-nova, ao lado de nomes como Toquinho e Chico Buarque.
Em 1965, aos 19 anos, Taiguara gravava o seu primeiro disco como cantor, com a inclusão de cinco composições de sua autoria. Embora o disco não tivesse tido grande repercussão com relação a vendas, o cantor iniciante recebeu o reconhecimento de nomes como o do pianista Luiz Eça: “não é apenas um cantor, mas um verdadeiro músico”; do compositor Edu Lobo: “ele tem uma das vozes mais impressionantes que já ouvi;
A cantora e compositora Maysa, considerava Taiguara e Sílvio Caldas os melhores cantores do Brasil.
Por essa época iniciava-se o que o crítico musical Zuza Homem de Mello chamou a “Era dos Festivais”, título de um livro que ele escreveu sobre o assunto. A partir de um primeiro evento, realizado em 1965, que premiou a canção “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, lançando para o sucesso Elis Regina, durante quase dez anos os festivais de música se transformaram, pela força da televisão, em acontecimentos que movimentavam a área cultural do país.
Taiguara começou, também, a se destacar como compositor de músicas, que o jornalista Tárik de Sousa classificou como “baladas românticas comportamentais”, vestidas com elaboradas orquestrações e que tiveram grande êxito popular, como “Hoje”, “Viagem”, “Maria do Futuro” e “Universo no Teu Corpo”.
Em um tempo em que a música popular brasileira estava impregnada de canções de marcado cunho político, como “Caminhando”, de Geraldo Vandré, “Viola Enluarada”, de Marcos e Paulo Sergio Valle, e o rádio tocava músicas com referência a Che Guevara, “el nombre del hombre muerto”, como em “Soy Loco por Ti America”, de Gilberto Gil e Capinam, Taiguara andava na contramão dessa vertente, fazendo canções em cujas letras predominava o erotismo e, por causa disso, começaram a ser objeto de vetos da censura.
“- Eu sou sua admiradora […] por que você está se metendo com essas coisas, meu filho? A juventude gosta tanto de você. Você é um cantor romântico”.
Levantamento feito pela jornalista Janes Rocha, que escreveu o livro “Os Outubros de Taiguara – Um artista contra a ditadura: música, censura e exílio” (Editora Kuarup, 2017), identificou que, somente no ano de 1974, de 61 músicas que Taiguara apresentou à Polícia Federal, 36 delas foram censuradas. No total, oitenta e cinco letras de músicas do compositor foram vetadas pela censura.
O outro disco de Taiguara proibido foi “Imyra, Tayra, Ipy”, de 1976. O álbum chegou a ser colocado nas lojas para venda, mas, três dias depois, os discos foram recolhidos pela Polícia Federal e destruídos. “Imyra, Tayra, Ipy” teve uma esmerada produção, passou seis meses para ser gravado e contou com a participação de renomados músicos, como Wagner Tiso, Hermeto Pascoal, Toninho Horta, Jacques Morelenbaum, Novelli e outros. Somente em 2004, o álbum, no formato CD, foi novamente posto para venda, mas no Japão. No ano de 2013, trinta e sete anos depois que o disco foi realizado, “Imyra, Tayra, Ipy” foi relançado no Brasil.
A importância inovadora de “Imyra, Tayra, Ipy” pode ser avaliada por um depoimento do cantor e compositor Lenine. Perguntado pela revista Bizz sobre qual disco havia mudado a sua vida, Lenine respondeu: “É muito difícil indicar um disco. Escolho um que mudou não apenas o meu conceito de como fazer música, mas também do próprio artista que o fez. Chama-se Imyra, Tayra, Ipy. Foi um disco fundamental na minha concepção, mudou minha vida”.
Durante certo tempo, para conseguir que as suas letras pudessem ser aprovadas pela Polícia Federal, Taiguara passou a apresentá-las no nome da sua mulher, e, mesmo assim, em alguns casos, ainda teve que se submeter, para conseguir a aprovação, a verdadeiros malabarismos verbais, ajustando os textos para que pudessem “passar” pela censura, como foi o caso da letra de “Terra das Palmeiras”, do disco “Imyra, Tayra, Ipy”.
Para que a letra de “Terra das Palmeiras” pudesse ser liberada, Taiguara teve que alterar o trecho “Sonhada Terra das Palmeiras, onde andará teu Sabiá?” para “Sônia, da Terra das Palmeiras, onde andarás”. Em outro caso, a letra que tinha a palavra “polícia”, foi liberada com o seguinte parecer do censor: “teve a sua liberação condicionada à pronúncia do cantor: que deverá se feita em inglês, nas expressões ‘police’ e ‘peace and love’”.
A ação da censura sobre a obra de Taiguara passou a não obedecer a nenhum critério e, na fase mais severa, antes da sua saída do Brasil, os vetos às letras do compositor eram fundamentados por despachos sem qualquer relação com a análise dos textos, como esses:
Parecer, emitido em 10 de abril de 1974, sobre a letra da música “Tinta fresca”: “VETADO. Os incomodados que se mudem, pois as portas do nosso Brasil sempre estiveram abertas, para sair, aos indesejáveis.
Parecer, emitido em 21 de abril de 1974, sobre a letra da música “Porto de Vitória”: “VETADO. A insatisfação não condiz mais com a situação privilegiada do nosso país e o Dia da Vitória nosso Brasil já alcançou há muito tempo”.
Taiguara discursa no Comício das Diretas, no Rio de Janeiro |
“Canções de Amor e Liberdade”, o primeiro disco de Taiguara após o seu regresso do exílio, refletia o arraigado ativismo político que ele assumira, o que dificultava a sua reinserção no mercado da música. Para o crítico Tárik de Souza, “Depois de sobreviver à censura política, ele teria sucumbido à guilhotina econômica, que tem proibido a presença da MPB menos rala na mídia principal desde os anos 1980”.
Vencido na luta que travou, durante cinco anos, contra um câncer na bexiga, Taiguara faleceu, em 1996. Tinha cinquenta anos.
A música de Taiguara continua resistindo ao tempo. Há alguns anos, foi produzido um disco em que várias cantoras interpretam suas músicas, Fafá de Belém, Vânia Bastos, Fernanda Porto, Luciana Mello, Teresa Cristina, dentre outras.
Em 2016, o cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho colocou “Hoje”, uma das mais conhecidas canções de Taiguara, gravada há mais de meio século, como tema principal da trilha sonora do seu premiado filme “Aquarius”.
Fui passageiro do calvário de Taiguara na segunda metade da década de 1960, período dos anos de chumbo.
Ele foi um dos bastiões da resistência na frente de luta da música e de cada 5 músicas suas , 6 eram censuradas. Ele, Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Sérgio Ricardo, todos da ala de compositores, além dis intérpretes como Elis Regina, Nara Leão, MarIa Betania. Nora Ney, Jorge Goulart entre outros.
Chico Buarque teve de usar o pseudônimo de Julinho da Adelaide para driblar a censura.
Taiguara, além de grande compositor era um magistral intérprete da voz de veludo e Flávio Brigo foi muito feliz em brindar os leitores e internautas com esse magnífico artista e homem que gafou Taiguara. Ele não chegou a ser preso mas a tortura psicológica por que passou deve ter abreviado sua vida terrena encontrando a morte com 50 anos.
Grande artista, autor e interprete de músicas belíssimas e que foram marcantes para a geração da época.
A gente pensa que sabe quase tudo sobre os acontecimentos tenebrosos dos anos de chumbo da ditadura militar. Mas quando se depara com um texto deste fica cada vez perplexa. Taiguara uma voz tão linda, tão injustiçado