
Por: João Vicente Machado Sobrinho;
Desde o início do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, uma parte representativa da Câmara dos Deputados deu curso, de forma planejada e sutil, a um projeto de chantagem contra o Poder Executivo. O apetite incontido de parte do Legislativo manteve a bancada do baixo clero à margem da estratégia fisiológica e da partilha dos benefícios auferidos pela elite intelectual do parlamento, que operava de maneira pouco republicana.
Foi nessa época que irrompeu, nos bastidores do Legislativo, a numerosa — porém humilde — bancada do baixo clero, à procura de maior espaço na partilha da féria anual. Mesmo a contragosto do grupo dirigente de então, o grupo que tinha o apelido jocoso de “anões do orçamento” entrou em cena. Com apoio quase unânime, articulou-se um bloco de atuação numericamente expressivo, suficiente para eleger, de forma inesperada, o presidente da Câmara dos Deputados. O vitorioso era o deputado pernambucano Severino Cavalcante.
Na presidência, ele conseguiu, através da barganha e do conchavo, escancarar os portões do orçamento, articulando o tão sonhado acesso dos demais membros do baixo clero aos recursos da União. Agiram como o personagem lendário Ali Babá: “Abre-te, sésamo!”
Uma vez descoberto o atalho, Cavalcante tratou de alargar a vereda para a passagem de seus pares. Esse foi o marco zero das repetidas investidas ao orçamento da União, que se tornaram cada vez mais vultosas e frequentes.

Severino Cavalcante e os anões do orçamento
A estratégia adotada foi promover a desestabilização do apoio político a quem quer que ocupasse a chefia do Poder Executivo, se não fosse um devoto da cartilha neoliberal. Com esse propósito, iniciou-se um processo crescente de desgaste, tornando o Executivo ingovernável, independentemente de quem ocupasse a Presidência da República.
Nesse contexto, a bola da vez era a bem-intencionada presidenta Dilma Rousseff. A bancada do baixo clero percebeu que, apesar de numericamente expressiva, sempre tivera dificuldade de acesso aos cargos de maior relevância. Resolveram, então, virar a mesa e fazer valer sua maioria nas decisões de cúpula. Ora, por que não assumir a própria gestão da casa legislativa, passando a dar as cartas do jogo sujo de interesses?
Conforme planejado, teve início uma escalada golpista, com o apoio da imprensa oficial e de agentes políticos orgânicos, regiamente remunerados.
No segundo governo Dilma Rousseff, a eleição para a presidência da Câmara revelaria uma nova surpresa. A escolha recaiu sobre o deputado federal pelo PMDB do Rio de Janeiro, Rodrigo Maia, seguido de Eduardo Cunha — um azarão fora do prognóstico dos analistas políticos — que obteve 267 votos e venceu por maioria absoluta.
Se por um lado ambos eram ruins de verbo, por outro eram bons de verba e de conchavo. Conheciam como poucos os queixumes do baixo clero e os subterrâneos do parlamento. O grupo, ridicularizado no escândalo dos anões do orçamento, precisaria de um especialista do ramo para se reabilitar. A escolha recaiu primeiro sobre Rodrigo Maia e depois sobre Eduardo Cunha.
Ambos não se fizeram de rogado: chamaram o feito à ordem e passaram a capitanear o impeachment da presidenta Dilma — a rigor, um golpe parlamentar.

Os construtores do golpe parlamentar de 2016
Numa aliança estreita com o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol — integrantes da chamada “República de Curitiba” —, passou-se a escalar, de forma simultânea, o afastamento de Lula da disputa presidencial, impingindo-lhe uma culpabilidade nunca comprovada através da Operação Lava Jato — uma verdadeira farsa.
Daí à condenação e à prisão sumária de Lula por 580 dias foi um salto, baseado apenas em indícios, ao arrepio do direito positivo.
A ascensão do outsider e o golpe consumado

A ascensão do outsider e a consumação do golpe.
Com Lula fora do páreo, o outsider Jair Bolsonaro encontrou a pista livre para as eleições. Mesmo com todo o aparato jurídico, o apoio da máquina eleitoral e a consultoria estrangeira, não conseguiu maioria absoluta dos votos.
Antes disso, assumiu interinamente a Presidência o vice Michel Temer, que traiu vergonhosamente Dilma Rousseff. Apesar de comungar ideologicamente com os golpistas, Temer eximiu-se de responsabilidade, entendendo que o projeto era maior do que ele.
A inapetente gestão Bolsonaro, além de não governar, entregou o controle do governo aos presidentes da Câmara — Rodrigo Maia e Arthur Lira. Além disso, permitiu a instalação do gabinete do ódio, um braço informal do governo, com sede dentro do próprio Palácio do Planalto. O golpe, ao contrário do riso, morava ao lado da Presidência.
O terceiro mandato de Lula e a herança do golpe

Quando Lula assumiu o terceiro mandato, após derrotar o aparelho de Estado a serviço da candidatura de Bolsonaro, trazia em mãos uma carta-compromisso com a maioria pobre do país. Esses compromissos, modestos em termos financeiros, eram fundamentais para o resgate da fome e da miséria de mais de 20 milhões de brasileiros.
Nos dias que antecederam a posse, a imprensa oficial só discutia quem seria o ministro da Fazenda. A mídia especulava nomes, vasculhava biografias e descartava, um a um, os candidatos que não agradavam ao “deus mercado”.
De novembro de 2022 até a posse, o debate girou em torno de um só tema: qual ministro teria o perfil ideal para o mercado financeiro.
O capitalismo e sua nova velha lógica
Em artigo publicado em 8 de junho de 2020, a professora Juliana Fiuza Cislaghi, especialista em Orçamento Público e Seguridade Social da UERJ, escreveu:
“O capitalismo passa por uma onda de estagnação […] cujo ápice se deu com o fim do Muro de Berlim em 1989. Essa virada apoiou-se nos pressupostos da Sociedade Mont Pelérin, com Friedman, Mises e Hayek, e teve no regime ditatorial chileno o primeiro laboratório — uma demonstração de que a democracia, mesmo formal e liberal, era prescindível.”
Diante desse cenário, qualquer que fosse o ministro escolhido por Lula teria de se comprometer com o grande capital e com o arcabouço fiscal: limite de gastos públicos, cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, congelamento dos investimentos até 2030 e privatizações.
Sem base sólida no Congresso, Lula foi obrigado a montar um presidencialismo de coalizão, abrindo espaço para os opositores em troca da governabilidade.
O Congresso, por sua vez, que se beneficiara amplamente no governo Bolsonaro, manteve as vantagens: orçamento secreto, aumento das emendas, centralização de poder pelo centrão, estrangulamento do Executivo, PEC kamikaze e revisão de vetos.
O colapso do tripé republicano
A proposta de Montesquieu sobre a independência dos três poderes foi completamente desvirtuada no Brasil. O Legislativo passou a governar de fato, chantageando o Executivo em nome de benefícios próprios.
Chegamos ao estágio atual: o governo refém do Congresso Nacional.
O orçamento secreto — agora rebatizado de “emendas do relator” — segue distribuindo recursos conforme a densidade eleitoral de cada parlamentar. Em 2024, o orçamento, que deveria ter sido votado em agosto, só foi aprovado em abril de 2025, após longos meses de chantagem e barganha.

A farsa das emendas e o imposto da justiça
Mesmo após resolução do STF exigindo transparência, o Congresso aprovou, em 13 de março de 2025, uma nova norma que perpetua a falta de rastreabilidade.
Para aliviar as contas públicas sem recorrer ao corte de programas sociais, o governo propôs aumentar as alíquotas do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) para quem ganha mais — e reduzir o IRPF para quem ganha até R$ 7 mil.
A reação foi imediata: as elites bilionárias se revoltaram. Agentes do mercado financeiro, setores da direita e da extrema-direita, e até igrejas ricas se uniram contra a medida distributiva.
A mídia, as milícias digitais e os porta-vozes da elite tentaram inflamar o país, mas o povo entendeu o jogo e foi às ruas.

A derrota da justiça fiscal e o chamado à ação
Cínicos, os parlamentares desaprovaram o reajuste do IOF — a forma mais racional de financiar o Estado — e engavetaram a proposta de isenção do IRPF.
Se observarmos a pirâmide de renda, perceberemos que as medidas do governo beneficiariam 85% da população no caso do IOF e 64% no caso do IRPF.
Mesmo assim, a proposta em favor dos pobres e da classe média foi derrotada.
Só há uma forma de reverter esse quadro: o povo deve voltar às ruas em defesa dos próprios interesses. É imperativa a renovação total do Congresso em 2026, varrendo a escória parlamentar que sequestrou o Estado.
Como escreveu Carlos Eduardo Novais:
“Não quero nem o jejum nem a gula. Desejo simplesmente que a distribuição dos pães seja feita de acordo com a fome dos filhos do padeiro.”
Referências
– Do neoliberalismo de cooptação ao ultraneoliberalismo: respostas do capital à crise — Esquerda Online
– Congresso aprova proposta que perpetua Orçamento Secreto
– IOF: o que é, como funciona o cálculo e alíquotas?
– Fotografias:
– Severino Cavalcante e os anões do orçamento — Google
– Avanço das emendas parlamentares entre 2014 e 2024 — Google
– Advogados mandam Moro e Dallagnol para o museu — O Globo
 
				 




