
Por: Antônio Henrique Couras;
Outro dia me deparei com uma postagem de algum internauta que mostrava a foto do altar de sua avó. Ao lado das habituais imagens de Nossa Senhora Aparecida e São Francisco de Assis, havia a figura de um garoto de mochila. Coisa estranhíssima para mim, acostumado à iconografia barroca dos santos — aquela em que se distinguem apenas por sutis detalhes: São Francisco usa barba, Santo Antônio não; um aparece cercado de animais, o outro com o Menino Jesus nos braços; Santa Rita de Cássia carrega uma cruz, Santa Teresinha tem o manto das carmelitas e traz rosas junto à cruz. São sinais discretos, às vezes imperceptíveis, que dependem da mão do artista para não se confundirem. Mas a imagem de Carlo Acutis é, por ora, inconfundível.
Nascido em 1991, em Londres, e criado em Milão, Carlo era um garoto comum, apaixonado por videogames, informática e futebol. Desde pequeno, porém, cultivava uma espiritualidade intensa, que destoava da pressa e da indiferença típicas da idade. Participava diariamente da missa, rezava o terço e usava seus dons para evangelizar no ambiente que melhor dominava: a internet. Aos 14 anos, criou um site dedicado a catalogar milagres eucarísticos ocorridos ao redor do mundo, reunindo relatos e provas históricas — um trabalho minucioso e pioneiro para um adolescente. Em 2006, aos quinze anos, morreu de leucemia fulminante. Pediu, antes de partir, para ser enterrado em Assis, terra de São Francisco, “porque foi lá que me apaixonei por Deus”.
Seu corpo, encontrado incorrupto anos depois, atraiu multidões. Em 2020, o Papa Francisco o beatificou, chamando-o de “testemunha da era digital”. E a Igreja, que há séculos canoniza mártires, missionários e doutores, viu nascer o primeiro beato da geração conectada.

Ver sua imagem num altar é presenciar um choque de tempos. Entre o gesso clássico dos santos barrocos, agora há o retrato simples do menino de jaqueta esportiva, há uma ponte invisível — o mesmo fio que une o pincel de Giotto ao clique de um mouse. É a arte, mais uma vez, cumprindo sua missão: traduzir o divino no idioma do presente. Carlo não substitui o passado; ele o reinterpreta. E nisso reside o milagre da beleza — ela nunca repete, apenas renasce.
A Igreja Católica sempre compreendeu, ainda que aos tropeços, que o sagrado precisa ser redescoberto em cada época. Quando o mundo medieval se cobria de sombras, ela respondeu com vitrais coloridos; quando o Iluminismo a desafiou com razão e ciência, ela respondeu com o barroco — exuberância e emoção, lembrando que Deus também se sente. Quando o século XX pareceu perder a fé na beleza, ela ergueu basílicas de concreto e linhas puras, afirmando que o divino também pode ser minimalista. A cada virada da história, o templo se transforma, o pincel muda, o canto se adapta — mas o que se celebra permanece o mesmo.
A arte sacra, nesse sentido, é o espelho mais fiel da nossa própria espiritualidade. Ela mostra que o amor, para durar, precisa mudar de forma. O que o barroco ensinou com o dourado, Carlo ensina com a luz fria da tela. O gesto é o mesmo: iluminar. Ele representa o encontro entre fé e tecnologia — duas linguagens que, a princípio, pareciam incompatíveis, mas que nele se reconciliam. O menino que usava a internet para falar de Deus transformou o meio mais efêmero do mundo em um altar.

Há algo de comovente nessa inversão. Carlo viveu em uma época em que a atenção é um bem escasso, e ainda assim encontrou tempo para o silêncio. Em que tudo é descartável, ele cultivou a eternidade. Em que tudo é exibido, ele buscou o invisível. Sua vida é uma espécie de antítese do século XXI — e, paradoxalmente, é por isso que ele o representa tão bem. Sua santidade não é a fuga do tempo moderno, mas a sua redenção.
O retrato de Carlo nas igrejas, com seus traços adolescentes, é também uma provocação estética. Ele desmonta o que esperávamos da arte sacra: a solenidade, o drama, o sofrimento. Ao contrário, ele sorri. E isso, em si, já é uma revolução. Sua beleza não vem do martírio, mas da normalidade. Ele é santo sem mármore, sem coroa, sem teatralidade — e talvez por isso, mais real. Representa um cristianismo que se desarma das pompas e volta à ternura.
A Igreja, ao canonizá-lo, faz um gesto de humildade: reconhece que o Espírito sopra também nas linguagens novas, nas gerações que não vestem batina, mas carregam fones de ouvido. O mesmo Deus que inspirou os afrescos de Michelangelo agora pode inspirar um adolescente com um laptop. A beleza divina não pertence a um século — ela é infinita, mas sempre encarnada.

E nós, que tantas vezes associamos o sagrado ao passado, precisamos aprender a vê-lo com olhos de presente. É fácil venerar os altares antigos; difícil é perceber que o milagre ainda acontece — nas telas, nas vozes, nos gestos simples de quem tenta fazer o bem num mundo apressado. Carlo nos ensina a atualizar a fé sem perder a essência, a aceitar o novo sem destruir o antigo.
A arte e a religião compartilham a mesma vocação: ambas salvam o homem da estagnação. Toda vez que a Igreja se renova artisticamente — seja ao pintar uma capela, seja ao beatificar um garoto —, ela convida o mundo a fazer o mesmo. A beleza, quando é verdadeira, não é ornamento: é resistência. É a coragem de dizer que ainda vale a pena crer, ainda vale a pena criar, ainda vale a pena recomeçar.
Por isso, ver a imagem de Carlo ao lado de santos barrocos não é um contraste, mas uma continuidade. O altar daquela avó, com suas velas tortas e sua devoção sincera, é o retrato mais exato do tempo: o passado e o presente ajoelhados diante do mesmo mistério. Entre o dourado e o nylon, entre o terço de contas e o site em HTML, há o mesmo desejo humano de encontrar sentido.

Carlo Acutis não é apenas o santo da internet. É o santo da ponte — entre gerações, entre linguagens, entre tempos. Sua figura nos lembra que o divino não teme o novo; quem teme somos nós. E que seguir em frente, reinventar a forma, renovar a fé, é também uma forma de oração.
A Igreja o compreendeu, e talvez por isso o tenha colocado entre os bem-aventurados tão depressa. Porque a fé, como a arte, só sobrevive quando se permite renascer. O sagrado, afinal, não é o que se repete — é o que continua.
E talvez seja isso o que aquele altar doméstico queria nos dizer: que o céu é grande o bastante para caber um menino de mochila.
 
				 




