Por: João Vicente Machado Sobrinho;
Quando a espécie humana surgiu no mundo, veio dotada de uma inteligência privilegiada e bem mais desenvolvida. Mesmo assim, sua inteligência é limitada e tem dificuldade de perceber, com clareza, todas as nuances gravadas nas facetas da sua própria personalidade enquanto espécie.
Embora a maioria dos percalços naturais da vida seja real, concreto e de origem nitidamente material, a corrente filosófica de pensamento idealista insiste em simplificar, em banalizar e em creditar os nossos desabonos a castigos divinos. Essa é a porta aberta para uma estratégia sagaz, amplamente utilizada pela classe dominante: dogmatizar os percalços materiais do cotidiano, colocando-os fora do alcance da mente humana. Até mesmo a evidente e cristalina divisão de classes passa a ser considerada um desígnio divino, natural e inquestionável.
O surgimento inesperado dessas figuras caricatas é uma oportunidade que a classe dominante tem de revesti-las, mitificá-las, passando a apresenta-la como novidade salvadora- notadamente em momentos críticos da nossa vida, os quais não são raros.
As elites econômicas e financeiras, além dos intelectuais orgânicos que as assessoram, na maioria das vezes fazem uso de figuras desse tipo para fazer valer os seus propósitos. Algo parecido foi vivenciado no Brasil por ocasião do golpe parlamentar de 2016: uma trama maquiavelicamente armada pela extrema direita para afastar Dilma Rousseff da Presidenta da Republica.
Não foi uma trama de ação instantânea. Começou a ser moldada, a partir do ano de 2013, quando eclodiu com aparência de espontaneidade, tendo como causa um aumento de passagens de ônibus-uma pauta da esfera de competência municipal que oportunizou à extrema direita quebrar a inércia em que se encontrava, agastada com o sucesso das gestões de Lula.
Ora, todos nós sabemos que, as elites brasileiras não usam, e até têm ojeriza a transportes de massa. No entanto, de posse de uma bandeira que lhes era estranha, lá estavam elas ocupando as ruas do país e responsabilizando, pasmem, a Presidência da República.
Velhos militantes da política percebemos e estranhamos a ausência de uma vanguarda de luta naquela pantomima de aparência espontânea. Mal sabíamos nós que aquele movimento era o alvorecer do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
O crime de que acusavam a presidenta Dilma era o uso das pedaladas fiscais. Para aqueles que não lembram, essa pratica, a rigor, é um empréstimo bancário ao Estado Nacional sob forma de antecipação de receita. Obviamente, mediante a cobrança de juros a posteriori, sobre o excesso de saque.
Essa ainda é uma pratica corriqueira, presente e pretérita, à qual os governantes federais, estaduais e municipais recorrem, sem que por isso lhes sejam imputadas irregularidades. Melhor dizendo: é uma simples antecipação de receita, que 90%, que os correntistas de pessoa física utilizam com o uso do cheque especial. Dessa forma, a chantagem imposta pela Câmara dos Deputados e parte do Congresso Nacional ao Executivo naquela época, não passou de represálias por interesses contrariados.
Tudo começou a ser lapidado a partir de 2016, atravessou o governo interino e golpista de Michel Temer, e o governo cumplice e indiferente de Jair Bolsonaro, onde quem governava, de fato era o presidente da Câmara Artur Lira.
A extrema direita, que vencera uma vez com o desfecho do golpe contra o mandato legitimo da presidenta Dilma, sempre teve dificuldades em formar quadros políticos qualificados para dar continuidade aos seus projetos. Em vista disso, cuidou de modo solerte e simultâneo de inviabilizar a candidatura que já se prenunciava vitoriosa: a de Lula. Como não se faz nada sozinho, contou com a ajuda informal e à distância da CIA, além da vista grossa, de parte do judiciário. A trama urdida a muitas mãos teve como protagonistas principais uma dupla de heróis tupiniquins do Estado do Paraná: o então Juiz de Direito e hoje senador Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, então Procurador Federal de Justiça -a rigor, dois heróis de fancaria.
Sobre Lula, foram forjadas várias acusações, entre as quais a de possuir um sitio de pouca estrutura em Atibaia, interior de São Paulo, além de um apartamento tríplex muito simples, numa praia popular da cidade de Santos. Restou provado que os imóveis nunca pertenceram a Lula, como depois ficou suficientemente comprovado. No entanto, lhe custou 580 dias de cadeia em regime fechado.
Como a corrupção é algo inadmissível e uma prática que deve ser condenada por quem tem ética e princípios, o liberalismo capitalista se valeu do uso da mentira para imputar uma culpabilidade inexistente a um adversário invencível que era Lula. Eles sabiam que mais uma vez iriam ser derrotados nas urnas, pois Lula tinha o apoio popular e grande prestigio e respeito por tudo já fizera.
Então, para destruí-lo, conjugaram-se contra ele: o preconceito odiento, o nojo, a repugnância, a inveja e o ódio de classe. Daí em diante ele passou a ser vítima de uma campanha difamatória e sórdida, com a velada intenção de apagá-lo para sempre da vida pública do nosso país.
Ledo engano! Depois de todo calvário e da perfídia que lhe foram imputados, Lula retorna ao cenário político nos braços do povo para enfrentar Jair Bolsonaro e toda a estrutura por ele montada para sua perpetuação. Por ser ele a maior liderança da política nacional, venceu as eleições de 2022.
O povo não abandonou Lula, nem mesmo na Prisão
Sempre foi muito difícil para as elites brasileiras aceitarem Lula como o estadista que continua a provar que é. Notadamente as elites paulistanas, um Estado com a pujança e a força econômica de São Paulo, onde a rejeição a Lula é endêmica. Para parte dessas elites, continua sendo muito difícil digeri-lo: um pobre nordestino, flagelado pelas secas, retirante fugido da fome, da sede e do domínio do latifúndio, que chegara ao São Paulo de 400 anos com seus pais e de um lote de irmãos menores.
Depois de um curso no SENAI, tornou-se torneiro mecânico, depois líder sindical. Daí para a militância política foi um salto. Teve a ousadia de fundar um partido político em plena ditadura militar. Com a inovação e a visibilidade alcançada, atraiu para o Partido dos Trabalhadores um nicho denso da elite intelectual brasileira-como a figura emblemática do grande mestre Florestan Fernandes, o maior sociólogo das três Américas, entre outros. Hoje é consagrado como a maior liderança nacional, um expoente de grande destaque internacional. e estadista reconhecido e respeitado mundialmente.
Alguém já disse que a diferença entre o remédio e o veneno é a dosagem. Para as elites brasileiras a dosagem de tolerância foi exagerada e hoje em dia se tornou quase incontornável. Por essas e outras razões, passaram a vê-lo como um perigoso inimigo de classe. E é isso que difundem com ódio. Essa ideologia de extrema direita, disseminada pelas elites raivosas, contaminou uma parte representativa da população. Nesse extrato populacional, sem dúvidas deve haver uma parte afetada por patologias de ordem mental, bem definem os psicólogos e psiquiatras. As mais comentadas:
. Dissonância cognitiva: O professor Leon Festinger da New Scholz for Social Research de Nova York define:
“Dissonância Cognitiva é uma tensão entre o que uma pessoa pensa ou acredita, e aquilo que faz. Quando alguém produz uma ação que entra em desacordo com aquilo que pensou, gera-se esse desconforto entre os mecanismos psíquicos. Assim, acontece o efeito da dissonância cognitiva. Portanto, dissonância cognitiva é a incoerência entre o que a pessoa diz ou pensa (crenças, valores, princípios) e o que a pessoa realmente pratica.”
O melhor e mais contraditório exemplo que temos é o indivíduo que vive a criticar a corrupção, sendo ele mesmo um corrupto costumaz.
. Síndrome de Estocolmo: definida como:
“A Síndrome de Estocolmo é um mecanismo de enfrentamento de uma situação cativa ou abusiva. As pessoas desenvolvem sentimentos positivos em relação aos seus captores ou agressores ao longo do tempo. Esta condição se aplica a situações como abuso infantil, abuso de treinador-atleta, abuso de relacionamento e tráfico sexual.”
Ressalvadas essas duas patologias de ordem psicológica, é oportuno apreciar a terceira de maior incidência. Ela congrega um número bem maior de adeptos e, ao contrário das anteriores, é muito contagiosa. Referimo-nos ao ódio de classe.
Alguém já disse que as elites não têm ódio dos pobres, o que sentem, na verdade, é nojo. Esse sentimento é fácil de perceber, quando alguém entra em trajes simples-mesmo que limpos-em restaurante daqueles considerado “chique.” Os olhares burgueses se voltam todos para ele, como se ali tivesse entrado um extraterrestre. Os cochichos se alastram como fogo, de mesa em mesa. Alguns chegam até a chamar o maitre e pedir para retirá-lo do ambiente. Essa repulsa também é muito comum em aeroportos e em aviões de passageiros, e em ambos os casos temos inúmeros exemplos.
Os extratos sociais de classe de menor altitude costumam usufruir dos prestígios e riquezas da elite dominante, mesmo que o seu próprio status seja inferior. Esse é o caso das classes média-média e média-baixa, que vivem no vácuo entre a classe baixa e as elites. Não quer pertencer e humilham as de baixo, mas não tem cacife para subir ao topo da pirâmide social.
Não é incomum ouvir a frase debochada “essa gentalha não presta” “o que é que esse povinho está fazendo aqui?”. Esse é um dos sintomas do ódio de classe.
Sobre o bolsonarismo, já ouvimos muito a pergunta: como explicar essa paixão cega e contraditória? Na realidade essa incrível contradição é um fenômeno de difícil explicação. Como pode um pobre explorado ser apaixonado de direita? No nosso entendimento, é possível que alguns sejam acometidos da dissonância cognitiva, da síndrome de Estocolmo, ou até mesmo de um misto de ambos. Todavia, no tocante à essa inexplicável maioria bolsonarista, o fator predominante é uma forma aguda de ódio de classe.
Bolsonaro e o ressentimento histórico
Ora, pelo que a história registra, Jair Bolsonaro foi rejeitado pelo Exército ao qual servia e foi posto na reserva remunerada. Contra ele pesavam acusações de vários casos de indisciplina. Além disso era um soldado de baixíssimo intelecto, aparentemente submediocre, temperamental, explosivo, incendiário, indisciplinado e frustrado.
Depois de várias tropelias atípicas e punições disciplinares, estando prestes a ser expulso do Exército, obteve complacentemente uma anistia e foi reformado. A frustração por não ter conseguido chegar ao generalato, parece ter lhe acompanhado para o resto da vida. Talvez, a segunda frustração não ter participado do golpe de Estado de 1964 tenha despertado nele esse ódio irreconciliável de classe. Ingressou então na política: vereador, depois deputado estadual e, posteriormente, deputado federal por vários mandatos, até, chegar-por acaso à Presidência da República. No mandato de deputado federal ele teve participação ativa no golpe parlamentar contra a presidenta Dilma. No dia do seu impeachment, fez uma apologia emocionada ao famigerado Cel. Carlos Alberto Brilhante Ulstra, acusado de torturas, desaparecimentos e mortes de presos políticos durante a ditadura militar.
Quando a Presidência da República lhe caiu no colo, Bolsonaro realizou o sonho frustrado e enrustido de comandante supremo das Forças Armadas. Como presidente, passou a acumular, por lei, a função de comandante geral, com poder de mando em generais, almirantes e brigadeiros. Era a glória total! Essa condição de superioridade lhe deu um nó na cabeça e ele passou a mostrar serviço, bravateando a três por quatro.
Nessa fase gloriosa, animou-se a se eternizar no posto de comandante supremo, talvez inspirado em figuras nazifascistas históricas como Francisco Franco, Adolf Hitler e Mussolini. Entusiasmado, Bolsonaro montou seu próprio contingente militar no palácio do planalto, nomeando 6.157 militares para diversos cargos no seu governo-de soldado até generais de quatro estrelas.
A descrição mais adequada que encontramos foi inspirada no saudoso advogado e tribuno Raymundo Asfora. Bolsonaro, com a sua retórica inflamada e vazia de conteúdo, de gestos tresloucados e olhos esbugalhados, passou a destilar diariamente o seu ódio para uma claque montada em frente a um puxadinho do Palácio da Alvorada.
O resultado é que o seu ódio de classe foi a forma usada por ele para adquirir adeptos- pasmem, até nas universidades. Essa gente Sendo essa gente o combustível da sua fogueira de vaidade. Foi com a participação ativa de alguns deles que Bolsonaro, insatisfeito com o resultado das urnas e vendo seu sonho escapar pelos dedos, idealizou com seu grupo o golpe de Estado que quase aconteceu em 8 de janeiro de 2023. A tentativa frustrada lhe rendeu vários processos, s pelos quais foi julgado, condenado e preso– sendo punido exemplarmente.
Como dizem que o uso do cachimbo faz a boca torta, Bolsonaro que já fora anistiado complacentemente uma vez, despachou um dos filhos para os USAN para, a partir de lá e com o apoio de Donald Trump, conspirar contra a nossa soberania com insinuações e ameaças intimidatórias. Na sua ira incontida não poupou sequer os seus apoiadores ligados ao agronegócio. Ele e a famíglia não ofenderam apenas o Executivo e o Judiciário brasileiros: nesse papel apátrida de delator ainda contaram com aliados cumplices. Mesmo assim continua a disseminar o ódio de classe, agora com o propósito de extrair à fórceps a segunda anistia que lhe foi negada — e que servirá de exemplo para a posteridade.
Referências:
Dissonância Cognitiva: significado e exemplos – Psicanálise Clínica;
Síndrome de Estocolmo: O que é, sintomas e como tratar;
O gênio da conspiração – revista Piauí;
Teoria marxista da dependência – problemas e categorias, uma visão histórica – Expressão Popular;
Fotografias:
Em qual classe social você está? Descubra como o Brasil está dividido em 2024;
Bolsonaro cita Ustra no voto pelo impeachment de Dilma Rousseff;
No bunker de Lula: ex-presidente recebe bispo e pai de santo na prisão – Época;
https://pt.linkedin.com/pulse/dissonância-cognitiva-ronaldo-paes-leme;
ttps://www.politicaparaibana.com/sindrome-de-estocolmo-coletiva-rui-leitao;
A pobreza existe não porque é difícil saciar a fome dos pobres. A pobreza existe pela dificuldade de saciar a ganância dos ricos. – FRASES DE UM CRISTÃO;
História: O tributo de Bolsonaro ao general que ajudou a protege-lo no Exército | VEJA;
Maioria na reunião golpista ficou calada, que pode significar omissão;