Por: Antonio Henrique Couras;
Não sei se o leitor já passou pela infeliz experiência do que os ébrios chamam de “ressaca moral”. Não falo daquela mistura de náusea, dor de cabeça e promessas vazias de nunca mais beber, mas da sensação profunda de vergonha e constrangimento provocada por uma súbita lucidez, aquela que nos lembra das barbaridades cometidas sob efeito do álcool.
Carmen Miranda canta, com sua alegria irônica e inconfundível, em “O Mundo Não Se Acabou”, a história de quando chegou ao morro a notícia de que o mundo estava por um triz. E, crendo nisso, ninguém quis desperdiçar o tempo: venderam tudo, beijaram quem quiseram, dançaram, beberam, entregaram-se aos excessos da noite como se o amanhã não estivesse garantido. Foi um porre coletivo de liberdade e delírio, embalado pela certeza do fim.
Mas, como de costume, o dia seguinte chegou. O mundo não acabou como anunciado e o que restou foi a ressaca (física e moral), o desconforto de ter vivido como se não houvesse consequência. A música escancara essa ironia: a vida seguiu seu curso, mas aqueles que apostaram tudo na última farra agora encaram a fatura da ousadia.
Já faz algum tempo que me sinto como quem desperta, cambaleante, de uma longa embriaguez que me consumiu boa parte da existência. “Como é que eu pude achar que aquilo ia dar certo?”, “Onde estavam meus neurônios naquele dia?”. Mas, bem, o passado não se muda. No máximo, se perdoa.
Talvez, para muitos leitores, o desabafo de um sujeito de 31 anos soe ridículo. Reconheço que ainda tenho, com sorte, meio século pela frente. A juventude ainda me pisca com simpatia. Mas permitam-me a licença poética dessa breve reflexão.
Graças a Deus, meus poucos neurônios, quando medicados e não distraídos pelos surtos de ansiedade ou depressão, funcionam até que razoavelmente bem. Aos 25, considerava meu eu de 18 um completo bocó. Hoje, olho para quem fui há dois ou três anos com o mesmo espanto reservado aos casos perdidos.
Como diabos não pensei em fazer tal ou tal coisa? Por que raios não corri atrás daquele curso, daquela qualificação? E, embalado pelas vozes eternas das nossas cantoras, me vem Maysa: “Se eu soubesse, então, o que sei agora, não seria essa mulher que chora.” Pois bem: eu não sabia. E agora só me resta o pranto — e a reconciliação comigo mesmo.
Deus, lá do alto, me agraciou com um passado relativamente breve. Arrependo-me mais das omissões do que dos atos. Carrego poucos “causos” de vergonha homérica. Meu arrependimento maior? Não ter sido mais ousado.
Fui a um casamento sem ter sido convidado (em minha defesa, achei que seria bem-vindo). Não lamento ter ido, comido a comida duvidosa, bebido o vinho barato e engolido aqueles pavorosos bem-casados. O que me atormenta é não ter dançado em cima da mesa, não ter beijado o noivo, não ter embriagado o padre. Odeio não controlar a narrativa dos meus atos. Naquele dia, perdi amigos que julgava leais, fui linchado virtualmente, e sabe do que me arrependo?
De não ter amarrado os palhaços com a corda do trapézio no alto do picadeiro enquanto assistia o circo pegar fogo. Teria sido uma cena magnífica de se assistir comendo algodão-doce.
Mas é isso, deixemos o passado lá em seu caixão amargoso. E celebremos a sabedoria do presente que no futuro julgaremos como a mais total e completa imbecilidade.
De fato, a maior dádiva do futuro, o maior presente, é o dia de hoje, onde podemos construir o amanhã. Quanto mais o tempo passa, mais eu vejo que se não morri, sobrevivi. Sobrevivi à asma, à adolescência e aos anos 2000. As dívidas são problema do banco que precisa receber. Quanto à saúde, minha missão é dormir e acordar amanhã, depois vejo o que faço.
Quanto à carreira, não adianta me lamentar pelas decisões tomadas, pelas coisas não feitas ou pelo tempo perdido. Fazer, hoje, o que posso. Ainda tenho tempo de ser um honorável senhor de seus oitenta e tantos anos conhecido pelo seu trabalho de uma vida e que hoje anda mal vestido com os cabelos assanhados que dá nome aos passarinhos do jardim e que tem como amigo um cachorrinho igualmente idoso a quem leva para passear vagarosamente pela vizinhança.
Enquanto não estivermos debaixo da terra frios e carcomidos pelos tatus, há tempo de sermos o que quisermos.