
Por: Antonio Henrique Couras;
Nos últimos meses, Pernambuco passou a ocupar um lugar improvável no noticiário internacional: o de destino para gestantes russas que vêm ao Brasil para dar à luz. O fenômeno, rapidamente rotulado como “turismo de partos”, tem provocado reações que vão da curiosidade ao moralismo indignado. Mas talvez o que ele exija, antes de tudo, seja menos espanto e mais honestidade intelectual.
O Brasil, por escolha constitucional, adota o jus soli (algo como “direito da terra” em latim): quem nasce em seu território é brasileiro. Esse princípio não é um descuido histórico nem uma brecha jurídica, mas uma afirmação política profunda. Ele expressa uma ideia de pertencimento fundada no território, não no sangue; no nascimento, não na herança étnica ou nacional. É, em essência, uma concepção inclusiva de nação.
Quando mulheres russas atravessam oceanos para parir aqui, elas não estão burlando o sistema brasileiro. Estão, na verdade, fazendo uso literal e consciente de uma regra que o próprio Brasil decidiu adotar. O desconforto que isso gera diz menos sobre elas e mais sobre nossas próprias contradições.

Grande parte da indignação pública se concentra no uso do Sistema Único de Saúde. Fala-se em “abuso”, “aproveitamento”, “injustiça com o contribuinte”. Mas o SUS foi concebido como um sistema universal, não contributivo e baseado na dignidade da pessoa humana. Ele atende brasileiros, estrangeiros, turistas, migrantes, refugiados e pessoas em situação de rua. Não por ingenuidade, mas por princípio.
Criticar gestantes estrangeiras por acessarem o SUS é, no fundo, questionar o próprio modelo civilizatório que escolhemos. Se o problema é o subfinanciamento, a precarização ou a sobrecarga do sistema, a causa disso não está no parto de algumas centenas de estrangeiras, mas em décadas de decisões políticas que naturalizaram a escassez como destino.
É mais fácil apontar o dedo para mulheres grávidas do que encarar o fato de que o SUS funciona apesar do Estado, não graças a ele.
Há também um elemento que raramente é dito em voz alta: o Brasil sempre foi exportador de turismo de partos. Durante décadas, famílias brasileiras de classe média e alta viajaram aos Estados Unidos para garantir cidadania americana a seus filhos. Essa prática nunca foi tratada como “ameaça à soberania”, mas como estratégia legítima de mobilidade social.

Quando o fluxo se inverte, e o Brasil deixa de ser apenas fornecedor de mão de obra e passa a ser fornecedor de cidadania, o discurso muda. O que antes era “planejamento familiar” vira “oportunismo estrangeiro”. O incômodo não é jurídico. É simbólico.
No caso específico das russas, há ainda um pano de fundo geopolítico evidente. Guerra, instabilidade, sanções, isolamento internacional. Ter um filho com cidadania brasileira significa abrir uma porta para o futuro, para a circulação, para a proteção consular, para a escolha. Não é um gesto romântico, mas profundamente pragmático. E não há nada de imoral nisso.
Aliás, talvez seja justamente esse pragmatismo que nos confronte. O passaporte brasileiro, tantas vezes desvalorizado internamente, passa a ser visto como ativo estratégico por quem olha de fora.

O problema real não é o turismo de partos. É a intermediação comercial opaca, a venda de “pacotes” que incluem acesso a serviços públicos gratuitos, a possível orientação para omitir informações migratórias e a transformação da cidadania em produto de balcão. Isso, sim, merece fiscalização séria, transparente e sem histeria. Mas isso é um debate regulatório, não moral.
Se o Brasil quiser restringir o jus soli, que o faça por meio de emenda constitucional, assumindo o custo político e simbólico dessa escolha. O que não faz sentido é manter a regra, se beneficiar dela historicamente e, quando estrangeiros passam a usá-la, reagir com escândalo tardio.
O turismo de partos em Pernambuco não revela uma falha do sistema brasileiro. Revela algo mais desconfortável: que o Brasil, apesar de tudo, ainda oferece algo que muitos países deixaram de oferecer — pertencimento automático, sem testes, sem pedigree, sem genealogia.

Talvez a pergunta correta não seja “por que elas vêm parir aqui?”, mas “por que isso nos incomoda tanto?”. A resposta pode dizer muito mais sobre o país que somos, no fundo, não somos muito diferentes dos notórios racistas e xenófobos dos países que nos colonizam.




