Por: Antonio Henrique Couras;
Outro dia, enquanto dava aula e segurava uma xícara de café entre os dedos, dessas de porcelana meio grosseira, dita caipira, pintada a mão sobre relevos florais, um primor de delicadeza, uma aluna comentou, com certo encantamento, sobre a delicadeza daquele pequeno objeto. Pela câmera, ela conseguiu notar que se tratava de uma peça especial, e eu sorri, confirmando: era uma das raras heranças que me restaram da minha avó paterna. Ela então disse que jamais teria coragem de usar algo tão precioso no dia a dia, com medo de quebrar. E eu, quase sem pensar, lhe respondi com sinceridade: para mim, a beleza é como o ar que respiro, como o alimento que me sustenta, algo sem o qual eu me sinto vazio, fraco, quase morto.
Ela sorriu com delicadeza, talvez surpresa, talvez só por educação, mas essa pequena troca ficou martelando na minha cabeça ao longo de todo o dia. Como é difícil explicar o papel da beleza na vida da gente! Para muitos, ela parece supérflua, um capricho. Mas, para mim, é fundação, não enfeite.
Lembro-me de São Tomás de Aquino, que dizia que a beleza não é mero adorno, mas algo que possui integridade, proporção e claridade. A beleza é, antes de tudo, uma manifestação da verdade. Como o sol que, ao nascer, não apenas ilumina, mas também aquece e dá vida.
Aquela xícara que minha aluna viu, delicada, com filetes dourados já um pouco desgastados pelo tempo, flores pintadas à mão, não é apenas um objeto bonito. Ela é memória, presença, silêncio compartilhado com minha avó.
Ao usá-la, não estou arriscando sua destruição, mas salvando seu sentido: o de ser usada, amada, admirada. Preservá-la apenas dentro de um armário fechado seria como colocar uma flor num cofre.
A beleza, para mim, é isso: presença ativa. Não está apenas na arte exposta, mas na mesa posta com cuidado, na roupa bem escolhida para um dia comum, no bilhete deixado com letra caprichada. Está no jeito como escutamos alguém, como acolhemos uma dor alheia, como transformamos o banal em rito.
Há quem pense que esse olhar estético é fútil. Não é. São Tomás diria que é metafísico. Ele acreditava que a beleza está ligada à claridade, à capacidade de revelar a verdade do ser. Uma flor é bela não só porque agrada aos olhos, mas porque expressa com intensidade sua própria natureza. Assim também é o gesto humano, quando sincero, quando justo, quando íntegro.
Penso no que disse minha aluna. No medo de usar aquilo que é belo demais. Quantas vezes vivemos assim? Com medo de viver plenamente o que é bom. Medo de amar profundamente, de nos comover, de permitir que algo nos toque de verdade. Guardamos nossas melhores louças, nossos melhores sentimentos, para um dia especial que nunca chega.
Talvez porque vivemos num mundo que relativizou demais a beleza, que a desconfia. Preferimos o útil, o imediato, o descartável. Esquecemos que a beleza tem um poder transformador. Que ela nos reconcilia com a vida. Que nos ajuda a suportar o peso dos dias.
Lembro-me de quando criança ter em minha casa sempre a mesa posta. Mamãe não admitia que comêssemos sem toalha na mesa, com pratos díspares ou o que quer que fosse. Tudo no seu devido lugar. Era uma cerimônia cotidiana. E, olhando hoje, vejo o quanto isso era um exercício espiritual: afirmar, com cada pequeno gesto, que a vida vale a pena.
Beber café naquela xícara é, para mim, uma oração. Um modo de dizer que o tempo, apesar de corrido, pode ser vivido com beleza. Que mesmo em meio à rotina, há espaço para o encantamento.
A beleza, aliás, tem esse dom raro: o de suspender o tempo. Quando escuto uma música que me emociona, quando vejo um quadro que me comove, quando alguém sorri com sinceridade, por um breve momento, tudo para. Tudo faz sentido. Tudo se alinha.
E talvez seja por isso que eu precise tanto da beleza. Porque ela me lembra que existe uma ordem no mundo. Que mesmo quando tudo parece caótico, existe algo que resiste: a proporção, a integridade, a luz. E isso não está só nas grandes obras de arte, mas na forma como o sol entra pela janela, na simetria de uma folha, na voz de alguém que amamos.
São Tomás, com sua mente racional e seu coração crente, entendia isso. Ele via a beleza como reflexo da ordem divina. Como um caminho que leva a Deus. Porque, ao reconhecer a beleza nas coisas, reconhecemos algo maior que elas, aquilo que as criou, que lhes deu forma e sentido.
Penso nisso tudo enquanto termino a aula, ainda com a xícara em mãos. A aluna se despede, e eu fico olhando a câmera desligada, refletindo sobre quantas vezes somos tocados por gestos tão simples. Como uma pergunta, uma lembrança, um sorriso. Como uma xícara herdada, que carrega muito mais do que chá ou café, carrega histórias. Carrega beleza. Carrega o sagrado do cotidiano.
E me pergunto: quantas belezas ainda guardamos com medo de estragar? Quantas vezes deixamos de usar o vestido bonito, de preparar a mesa com capricho, de escrever um bilhete à mão, de fazer algo apenas porque é bonito? Como se o belo precisasse de justificativa. Como se não bastasse ser.
Talvez, se escutássemos mais o que disse Tomás de Aquino, entenderíamos melhor o papel do belo. Ele dizia que o belo agrada simplesmente por ser visto. Porque, ao vê-lo, reconhecemos algo verdadeiro. E é essa verdade silenciosa que alimenta a alma.
Termino meu café e lavo a xícara com o mesmo cuidado de sempre. Coloco-a de volta ao armário, mas na prateleira da frente. Porque amanhã vou usá-la de novo. Não por vaidade. Mas por fidelidade à vida.
Porque, para mim, a beleza não é luxo. É necessidade. É o ar que respiro, o alimento que como. É aquilo sem o qual eu não seria eu.