Escrever: ação solitária voltada a seres gregários

Por: Mirtzi Lima Ribeiro;

A inspiração é um fenômeno proveniente do íntimo, embora possa ser acionada através de elementos do mundo exterior e trazida à tona por algum símbolo, ideia, imagem ou alguma sensação de relevância. Ela é alcançada pela emoção e pela mente consciente de alguém que tenha a sensibilidade e a percepção para senti-la. Com isso, a inspiração vai se processando nos campos do raciocínio e da cognição, e por uma decisão e ousadia pessoal, podem resultar em arte no plano tangível, visível ou perceptível aos demais seres humanos.

No caso da escrita, esse processo invisível, próprio da percepção sensorial humana, vem revestido de ideias traduzidas em palavras. Enquanto esta inspiração estiver apenas esboçada, ficará circunscrita à seara dos diários, das anotações, das assertivas secretas, guardadas e ocultadas para o mundo.

Esses manuscritos ou arquivos armazenados em laptops e assemelhados, precisarão ser tratados e revisados, se houver desejo de sua publicação. Divulgados, será possível que algum dia venham a se transformar em peças literárias lidas massivamente e a lograr êxito com um público específico. E nesse contexto, podem virar livros de cabeceira ou artigos consagrados em periódicos, porque tiveram a capacidade de tocar o íntimo daquelas pessoas caracterizadas pela sede de aprender com as evocações da alma. Repito, tal feito só se tornaria possível caso essas palavras estivessem registradas em sentenças, poesias, contos, crônicas ou romances ficcionais de autores que se atreveram e se expuseram ao mundo das letras.

No meu entender, a inspiração é uma musa etérea, que pode ser encontrada quando nos elevamos e enveredamos através do silêncio e da solidão, naqueles momentos em que a consciência e a alma encontram a oportunidade e o ambiente adequados para extraírem as riquezas inerentes ao coração e as transportarem para o mundo da forma.

No filme “A Pura Verdade” (título original, “All Is True”, 2018), que narra os últimos anos de Shakespeare, há um diálogo pontual em relação ao processo de construção da escrita que enseja reflexões profundas na atualidade, mais de quatrocentos anos após a morte deste renomado autor.

Alguns trechos deste diálogo ocorrido entre Shakespeare e um jovem visitante, ele é perguntado sobre como se faz para ser um escritor da sua qualidade:

“- Jovem visitante: Senhor Shakespeare, eu só queria perguntar se…
– Shakespeare: A única maneira de ser escritor é começar a escrever.
– Jovem visitante: Eu só queria perguntar como o senhor sabia de tudo (…). Não há um canto desse mundo que o senhor não tenha explorado. Uma geografia da alma em que não saiba navegar. Como? Como sabe?
– Shakespeare: O que eu sei. Se é que eu sei! E não estou dizendo que sim. Eu imaginei.
– Jovem visitante: Mas dizem que saiu da escola com 14 anos e que nunca viajou. Imaginou de onde?
– Shakespeare: De mim mesmo.
– Jovem visitante: Do senhor?
– Shakespeare: Sim. Tudo que fiz, tudo o que vi, todos os livros que li, todas as conversas que tive, incluindo “Deus me ajude”, está dentro de mim. Se quiser ser um escritor e falar aos outros e pelos outros, fale primeiro por si mesmo. Busque dentro. Considere o conteúdo da sua própria alma. Sua compaixão. E se for honesto consigo mesmo, então, o que quer que escreva, tudo é verdade (…).
– Jovem visitante: Por que parou de escrever?
– Shakespeare: Vá embora!”

O aclamado dramaturgo, poeta e ator, fala dessa inspiração que nasce dentro de cada indivíduo e é evidenciada através de uma narrativa condizente com a realidade e a visão de mundo dessa pessoa.

É digno de nota que grandes nomes da literatura escreveram suas obras enquanto estavam sozinhos, em pequenos espaços elaborados para maior concentração ou até mesmo quando estiveram encarcerados. Nesses momentos, eles fizeram imersões no profundo de si mesmos, desfrutaram do silêncio criativo, tiveram maior intimidade com sua inspiração e intuição, de modo a organizar com maior precisão seus pensamentos e os alinhar às palavras mais adequadas aos aspectos que escolheram ressaltar.

O íntimo de cada ser humano possui uma espécie de parabólica que está receptiva a universos inimagináveis, riquezas sem fim, apoteoses sensoriais, imagens, sonhos, visões quase palpáveis, que trazem em si pacotes de informações, sensações, emoções, pensamentos, ideias e mundos incríveis que se apresentam plenos, completos e inusitados.

É essa riqueza que os mais sensíveis e inspirados autores conseguem transpor para as sentenças que escrevem e que levam multidões a novos níveis de compreensão e de comoção.

Esse cabedal de ideias transladadas para as suas obras, abrem a mente, o coração, a visão e a percepção dos leitores, porque carregam consigo sensibilidade, abrangência, um olhar mais desenvolvido sobre a vida, os aprendizados, as complexidades das relações humanas, os sentimentos que brotam do mais íntimo (alguns inconfessáveis), outros demonstrados na face, no olhar e nos sorrisos ou nas lágrimas de tristeza e de alegria.
É uma ambiência inteiramente diversa, abundante em tudo, capaz de oferecer a si mesmo e aos outros, as repercussões das vivências imaginadas, das inferências esboçadas, dos sentires e dos pulsares. É preciso buscar mais palavras, todas aquelas que estiverem disponíveis para serem usadas na busca de melhor traduzir toda essa gama de conteúdos, impressões e percepções.

Eventos sincrônicos, histórias icônicas, algumas vezes entrelaçadas a conceitos e padrões seculares de amor, vida e morte são relatados, impactando e despertando a doçura, o enlevo, a reflexão e a empatia dos leitores.

A arte de escrever nos remete à ação de esquadrinhar emoções e sentimentos, que geralmente haviam ficado encapsulados nas profundezas da alma. E isso move o ser humano a seguir com avidez em direção a novos níveis de compreensão e de alcance, inclusive com a possibilidade de transformar suas vidas, seus entendimentos e melhorarem a qualidade do próprio viver. Isso porque os leitores vestem e absorvem a roupagem, os personagens construídos, as frases ritmadas e os dizeres que os convocam a novos horizontes.

Nenhum leitor receptivo deixará de ser tocado por todo esse mote de sensações e de imagens que se formam a cada sílaba lida, a cada sentença assimilada e a cada história que está à sua frente. É como se muitos livros e a própria vida se abrissem e pudessem ser incutidos na mente de uma só vez. É uma experiência rica de significado, que tem a capacidade de transformar chumbo em ouro, em uma perfeita alquimia.

As palavras são a fotossíntese da alma, são os elementos que fazem desabrochar a flor interna da emoção, promover e catalisar novas sensações e comoções, abrindo caminhos para a luz passar e fazer uma travessia segura até o espírito, até onde não há mais fim, até onde moram o eterno e o infinito.

Os processos acionados pelas palavras alinhadas e agrupadas em um diapasão coerente, são como uma canção que traz vida à alma, que a põe em movimento alegre e benfazejo e é capaz de erguer o ser humano, lhe demonstrar o quanto é possível se superar, se reinventar, enfrentar limitações, encontrar-se com a própria essência, com o próprio caminho e com uma nova maneira de caminhar.

Os livros e as suas histórias, levam lenitivo aos amantes, aos enamorados, aos que desejam quebrar o gelo de seus corações, aos que querem estabelecer elos, sinapses inteligentes, dar sentido à existência, gerar relacionamentos agregadores e enriquecedores.

Enredos ficcionais chegam a se imortalizar porque ensinam e continuam a orientar por séculos como viver melhor. Eles trazem em si grandes lições e ensinamentos, ao esclarecer mentes e corações. Trazem soluções, novas inspirações e perspectivas, receitas de resignação e de sabedoria, de modo a auxiliar na saída de problemas e impasses, de revolucionar conceitos, de dar norte à vida de um indivíduo, de um povoado, de uma nação e do mundo.

Embora a atividade da inspiração, do planejamento, da pesquisa, da elaboração de textos seja eminentemente solitária, e na maioria das vezes é individual e profunda, ela é voltada ao universo gregário humano. Visa estabelecer pontes, levar cura, esclarecimento, compreensão, acionar a reflexão, e sobretudo, oferecer direção, saídas e soluções.

Quantas histórias não nos trouxeram lenitivo ou foram como luvas que cabem em nossas mãos, dadas as particularidades das narrativas que se assemelham à nossa vida cotidiana, aos impasses vivenciados, às comoções sentidas, às decisões que precisam ser tomadas, às diversas maneiras de enfrentar problemáticas?

E em que ocasiões precisávamos de uma perspectiva diferente da nossa, para abrir a nossa mente? Para que rumássemos a novos níveis de cognição e de aprendizado sem passar por experiências que poderiam desfigurar nossas emoções?

Textos imortalizados narram histórias que se encaixam nas diversas vivências humanas, oferecendo cenários e vertentes inéditas para nosso pequeno pensar.

Livros e textos assim, sempre nos evidenciaram grandes lições e trazem outras faces da verdade que ainda não havíamos alcançado, pelo ambiente restrito ao qual nos acostumamos. Por isso são capazes de nos tirar das nossas zonas de conforto, nos instigando a enfrentar as aflições ou incômodos que toda transformação impõe.

Muitos deles nos demonstram como encarar a vida sem endeusamentos, sem melindres, sem pena de si mesmo e sem entraves. A história do mundo também é a nossa história e com ela podemos aprender diariamente.

Um livro quando mexe conosco, na mente e no coração, especialmente nas nossas vísceras, é uma chave que nos conduz a buscar o melhor dentro de nós mesmos, extraindo nossos mananciais e fomentando as forças necessárias para acionar a coragem, a reciclagem e o acesso a abordagens mais amplas

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