Sou um criminoso em mais de 60 países

Por: Antonio Henrique Couras ;

Desde os meus 15 anos, eu sonho em ser diplomata. Sonho com a possibilidade de representar meu país, de estar em diferentes nações, de conhecer novas culturas e de falar diversas línguas. Para mim, a diplomacia sempre pareceu a mais nobre das carreiras, um caminho pelo qual eu poderia unir minha paixão por história, política e cultura com minha necessidade quase visceral de entender o mundo. Sonhei em caminhar pelas ruas de cidades lendárias, sentir o cheiro dos mercados árabes, ouvir as rezas entoadas ao pôr do sol e admirar o reflexo das cúpulas douradas dos templos e mesquitas no horizonte.

Por ironia do destino, muitos dos países que mais me fascinam são lugares onde minha existência é considerada um crime. Lugares que me atraem com sua grandiosidade histórica e que ao mesmo tempo me repelem com sua intolerância. Sempre sonhei em me perder nas ruas de Teerã, na herança persa que moldou o mundo; em caminhar por Samarcanda e sentir os ecos da Rota da Seda; em cruzar o Cairo e me ver diante das Pirâmides. Mas nesses lugares, eu não sou apenas um viajante apaixonado pela cultura e pela história. Sou um alvo. Sou um indesejado. Sou um criminoso pelo simples fato de existir.

Caso um dia me torne diplomata, no curso de formação do Instituto Rio Branco, precisarei aprender uma língua dita “exótica”. As opções hoje oferecidas são russo, árabe e mandarim. São línguas de civilizações antigas, de impérios que moldaram a humanidade. E, no entanto, todas elas pertencem a países onde a homossexualidade é crime.

Onde eu, mesmo trajando o terno da diplomacia, mesmo sendo um representante de Estado, não seria mais do que um desajustado, alguém que, se não estivesse protegido por um passaporte e imunidade, poderia ser condenado pelo simples fato de amar.

Então me pergunto: para que aprender a língua de países que criminalizam minha existência? Para que representar o Estado brasileiro em terras onde, se eu não estivesse resguardado por minha posição, poderia ser preso, torturado ou até morto? É uma reflexão amarga, porque no fundo sei que não é uma questão de escolha, mas de realidade. O mundo não foi feito para quem é diferente. E quando se é diferente, não importa de onde você veio, quem você é ou mesmo que você seja representante de uma das maiores potências globais: no fim do dia, você ainda é apenas um gay que pode ser condenado a ser apedrejado até a morte pelo simples fato de existir.

Em países como Uganda, Nigéria e Jamaica, antigas colônias britânicas, a criminalização da homossexualidade é um legado das leis coloniais que ainda se perpetuam com penas que vão desde multas até longas sentenças de prisão.

No mundo islâmico, nações como Arábia Saudita, Irã e Afeganistão aplicam a sharia, onde atos homossexuais podem resultar em punições brutais, incluindo a pena de morte por apedrejamento. Em ex-repúblicas soviéticas, como Rússia, Uzbequistão e Turcomenistão, embora a homossexualidade não seja sempre explicitamente ilegal, a perseguição e violência institucionalizadas tornam a vida de pessoas LGBTQIAPN+ insuportável. No Oriente Médio e Norte da África, países como Egito, Líbano e Marrocos usam leis de moralidade para perseguir aqueles que não se encaixam no que o Estado considera aceitável.

O total de países onde ser gay é um crime ultrapassa os 60. A criminalização assume diversas formas: em alguns lugares, leis herdadas do colonialismo continuam em vigor, como no Caribe e na África Subsaariana; em outros, a repressão se justifica por princípios religiosos ou pelo desejo autoritário de controle social. O que todas essas nações têm em comum é o fato de que não enxergam a homossexualidade como uma identidade legítima, mas sim como um comportamento a ser erradicado. Em certos países, a simples suspeita pode levar a prisões arbitrárias. Em outros, cidadãos são encorajados a denunciar vizinhos, colegas e até familiares. A imposição de pena de morte em estados como o Irã, Afeganistão e Arábia Saudita só reforça o terror imposto às pessoas LGBTQIAPN+.

Para muitos, ser diplomata é a realização de um sonho; para mim, seria também um lembrete constante de que, apesar de toda a pompa e da posição que se possa alcançar, ainda sou, aos olhos de muitos desses países, apenas um infrator por natureza. Um homem cujo maior crime é amar. Representar um país em território estrangeiro pode conferir certas imunidades, mas nenhuma delas apaga a sensação de que, em muitas partes do mundo, não sou bem-vindo. De que, se um dia eu estivesse fora do papel diplomático, seria tratado como um criminoso simplesmente por existir.

Olhando para essa realidade, minha paixão pela diplomacia se choca com a amargura da exclusão. O que significa representar meu país em um lugar onde minha identidade é um tabu? O que significa negociar acordos comerciais com líderes que me veriam como um ser indigno de direitos? O que significa falar fluentemente uma língua que pertence a uma cultura que me rejeita?

A resposta talvez esteja no próprio papel da diplomacia: dialogar, mesmo com aqueles que nos enxergam como inimigos. Mas aceitar esse desafio não significa ignorar a dor de saber que, em certos lugares, minha própria existência desafia a ordem social. Ao final, o mundo é um palco de contradições, e estar nele significa confrontar essas realidades, por mais cruéis que sejam. Ser diplomata pode me levar a qualquer parte do mundo, mas jamais mudará o fato de que, para muitos, serei apenas um homem condenado pelo crime de ser quem sou.

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