Por: João Vicente Machado Sobrinho;
A hidrologia nos ensina que apenas 3% da água existente na superfície do planeta terra é doce. Ou seja, é aquela que pode ser apropriada para uso, tanto na dessedentação dos animais, quanto na produção de alimentos através do processo artificial de irrigação.
Outra informação importante sobre a mãe natureza e que a hidrologia também nos ensina é que a quantidade de água existente no planeta terra é constante. Ou seja, não diminui e nem aumenta. Isto significa dizer que, por incrível que possa parecer, o volume de água disponível ao longo dos milênios é praticamente estável. Em contrapartida e paradoxalmente, a população do planeta terra não para de crescer.
A água doce pode ser encontrada em três estados físicos diferentes: no estado sólido, no estado liquido e no estado gasoso. A distribuição da água na superfície terrestre é irregular, tanto em termos temporais quanto em termos espaciais. Por isso é muito comum ocorrer a escassez pluviométrica nas zonas climáticas áridas e semiáridas e uma precipitação mais generosa nas zonas temperadas, úmidas e sub-úmidas.
Dos 3% de água doce existente na superfície terrestre, nem toda ela é de fácil apropriação. 71% do volume se encontra congelada e imobilizada nas calotas polares e nas geleiras de grandes altitudes; 18% está armazenada em aquíferos subterrâneos, mais ou menos profundos; 7% é a água de superfície encontrada em rios correntes, represada em lagos naturais e artificiais; finalmente, os 4% restante está disperso na atmosfera sob forma de vapor.
Diante dessa realidade, objetivamente só poderemos nos apropriar sem maiores custos de 0,21% da água doce do planeta terra.
Não obstante, e mesmo com toda essa limitação, seja por ignorância, seja por ambição ou seja por má fé, o animal humano insiste em desmatar, insiste em devastar, insiste em contaminar, insiste em poluir. Como consequência dessa insanidade a apropriação da água potável foi se tornando cada vez de mais difícil obtenção e de custo cada vez mais elevado. Notadamente quando o suprimento é para atender aos grandes e populosos aglomerados urbanos.
Tomemos um exemplo bem didático e bem próximo de nós que é o caso da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará. O crescimento populacional daquela cidade excedeu os prognósticos populacionais e passou a exigir uma demanda de água maior. Depois de várias ampliações e transposições de bacias e esgotadas as fontes mais próximas, a opção voltou-se para o aproveitamento das águas do PISF, através de regularização do Rio Salgado/Jaguaribe. Mesmo depois de tantas tentativas, os técnicos daquele estado optaram por sugerir a construção de uma Usina de dessalinização de água, com capacidade de potabilizar 1.000 litros de água doce por segundo, para o suprimento complementar da área metropolitana da capital.
Ao apreciar a questão do saneamento ambiental da área metropolitana da capital cearense, no que diz respeito apenas aos serviços de água e coleta de esgotos, não há como considerar apenas a cidade de Fortaleza isoladamente. A região metropolitana como um todo, abarca 19 municípios, os quais juntos representam 44% da população daquele estado, atualmente com 9.233656 habitantes.
“Quase metade da população cearense (44%) vive na Grande Fortaleza, que teve o número de habitantes atualizado recentemente pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A pesquisa mostra que a Região Metropolitana de Fortaleza passou a ser a de maior população do Nordeste, e a 6ª do País. São, ao todo, 4.167.996 pessoas. Somente a Capital tem 2.429.000 habitantes, estando atrás apenas de Salvador (2.857.329), Brasília (2.974.703), Rio de Janeiro (6.688.927) e São Paulo (12.176.866).” (1)
Se atribuirmos um valor de consumo per capita de 250 litros por habitante por dia, iremos necessitar de uma vazão aproximada de 12 m3/s para o abastecimento pleno da área metropolitana. Uma vazão dessa magnitude, corresponde a um volume total de 298 milhões de metros cúbicos de água potável por ano.
Atualmente o complexo de lagos artificiais, açudes ou barragens que abastecem a região metropolitana de Fortaleza, têm uma capacidade de acumulação total de 570.000.000 m3.
São eles os reservatórios de: Maranguapinho, Pacoti/Riachão, Gavião e Aracoiaba, que acumulam juntos mais ou menos 570.000.000 m3.
Se levarmos em conta a grande evaporação anual decorrente das altas temperaturas características da região, em torno de 40%, ela implicará numa perda total obrigatória de 228.000.000 m3/ano. Isto posto, o déficit inevitável provocado pela evaporação, reduzirá a oferta anual para 341.860.000m3. Esse “ladrão” praticamente anula a garantia hídrica necessária, que graças ao governo Lula foi restabelecida em parte pelas águas da transposição do São Francisco. Se considerarmos a perspectiva de exaustão iminente dos mananciais de água doce disponíveis e a proximidade da água do mar, é possível entender a decisão política dos gestores cearenses em optar pela dessalinização da água do mar.
O local inicialmente escolhido para a implantação da Usina de Dessalinização era muito próximo do ponto de acesso ao mar, de alguns cabos submarinos de telecomunicação que fazem a ligação com outros continentes através de cabos submarinos. O fato gerou um impasse que foi solucionado com a relocação da planta industrial.
Vejamos alguns trechos da descrição do projeto executivo:
“É na planta de dessalinização que acontece a parte mais importante do processo. A capacidade de produção é de 1 m³ por segundo (mil litros por segundo).
Dentro da planta, são três etapas de tratamento:
1. Pré-tratamento: nesta etapa, a água do mar passa por um primeiro processo de filtragem.
2. Osmose reversa: é a etapa mais importante do projeto. A água é pressionada contra membranas, que barram a passagem das moléculas de sais. Assim, duas soluções são criadas: solvente (água) de um lado, soluto (sal) do outro.
3. Pós-tratamento: livre dos sais marinhos, a água recebe flúor e outros minerais, além de passar por desinfecção e correção do pH. Após essa etapa, a água está própria para consumo humano.
Depois destas etapas, a água potável é levada para o reservatório dentro da usina. De cada 2,3 mil litros que chegam do mar, apenas mil litros chegam até o fim do processo.
Assim, ficam 1,3 mil litros encaminhados para o tanque de rejeito. No mesmo tanque, chegam também as águas de lavagem dos filtros do pré-tratamento. Todo esse material será levado de volta para o mar.” (2)
Análise Custo x Benefício:
A industrialização da água através do processo de osmose reversa já é uma técnica provada e pode ser considerada uma experiência exitosa. O uso de água dessalinizada já é comum em vários países do mundo, notadamente nas regiões áridas e de grande escassez do liquido como é o caso dos países do Oriente Médio. Todavia dois problemas básicos não podem deixar de ser levados em conta por ocasião do planejamento e da elaboração de um projeto ousado como esse.
O primeiro problema é a deposição do rejeito salgado resultante. Na verdade um concentrado de cloreto de sódio-Na Cl, o nosso conhecido sal de cozinha. Como já vimos anteriormente, em cada 2,3 mil litros de água salgada apenas 1 mil litros se prestam para consumo, ou seja, o rendimento é de apenas 43,47%, pois o restante é rejeito que exige um destino adequado.
O segundo problema é de ordem financeira e diz respeito ao alto custo de produção. Existe um grande dispêndio e um alto consumo de energia elétrica além do alto consumo e produtos químicos destinados à remineralizarão da água. O primeiro problema é uma decorrencia do rejeito da dessalinização, para o qual a Organização das Nações Unidas-ONU recomenda toda a atenção para os rigorosos cuidados que os responsáveis pela geração devem ter.
No caso da usina em construção no Ceará, em que pese a deposição do rejeito ser feita no próprio mar, é prudencial ter um olhar crítico para os cuidados com o lançamento concentrado e os seus efeitos sobre o bioma marinho. Lembremo-nos sempre que o mar tem flora e fauna próprias e por isso mesmo é fonte milenar de alimentos para diversas espécies de seres vivos, inclusive a espécie mais danosa de todas elas que é a espécie humana.
“Os oceanos cobrem 70% do planeta. Os mares fornecem alimento para mais de 3 bilhões de pessoas, além de absorverem 30% do dióxido de carbono lançado na atmosfera e 90% do calor gerado pelas mudanças climáticas. Cada vez mais, eles também estão abastecendo com água doce uma população que só faz crescer.
Embora não haja escassez de água do mar, a ONU Meio Ambiente aponta que é importante entender e monitorar o impacto ambiental das usinas de dessalinização, cujo número aumenta rapidamente pelo mundo. A dessalinização é o processo de remoção de sais da água. Um dos subprodutos dessa “purificação” é uma água salobra tóxica, que podem degradar os ecossistemas costeiros e marinhos.
Na maioria dos processos de dessalinização, para cada litro de água potável produzido, gera-se em torno de 1,5 litro de líquidos poluídos com cloro e cobre. Quando bombeada de volta para o oceano, essa água salobra tóxica diminui o volume de oxigênio na água e tem impacto nos organismos ao longo da cadeia alimentar
A pesquisa da ONU afirma que recursos hídricos não convencionais, como os oriundos da dessalinização, são fundamentais para promover o cumprimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6 — assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. A dessalinização pode ampliar os suprimentos de água para além do que está disponível nos ciclos hidrológicos. Mas para isso, também são necessárias inovações na gestão e descarte da água salobra residual;” (3)
O segundo problema que não é menos importante é o custo da dessalinização. A incidência maior de custos é concentrada no consumo de eletricidade, além dos e produtos químicos. O produto acabado é agua destilada, para a qual a remineralizarão é um imperativo para torná-la potável.
O engenheiro Renato Ramos é um especialista graduado pela UNICAMP, com mestrado em saneamento pela USP, além de ser consultor da Dow Chemical. Em uma entrevista concedida a Isabela Leite do G1/Sp ele opinou sobre a questão do abastecimento de água da capital paulista, durante o governo de Geraldo Alkmin. A opinião de Ramos sem nenhuma dúvida nos serve de referência, notadamente em relação ao custo. Vejamos alguns trechos da matéria:
“A dessalinização é usada na região semiárida do Brasil e em outros 150 países. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), afirmou durante evento em Santos nesta quinta-feira (6) que o governo estuda a possibilidade de abastecer cidades afetadas pela crise hídrica com água do mar. Alckmin, porém, não se mostrou esperançoso ao abordar o tema já que, segundo ele, o custo para a operação seria muito alto…..Renato Ramos admitiu que, tradicionalmente, o uso da água do mar para abastecer a população sempre foi mais alto em relação ao tratamento convencional. Segundo ele, com a seca nos mananciais, o gasto para buscar água em pontos mais distantes poderia ser reduzido com a dessalinização. “Cada vez precisamos buscar água [doce] mais longe e depois tratá-la. E isso também tem que ser embutido no custo, mas não é”, afirmou.
Em média, as estações de dessalinização tratam 2mil litros por segundo. Para cada 1 metro cúbico da água do mar (1 mil litros), é gasto US$ (R$2,55) para transformá-la em água doce para abastecimento. No valor estão envolvidos custos de captação, tratamento e entrega ao cliente.” (4)
A reportagem citada foi escrita no ano de 2014 e se atualizarmos os valores apresentados, teremos a preço de hoje um custo muito elevado de R$ 5,32 por metro cubico de água dessalinizada.
O valor cobrado pela CAGEPA pela tarifa social congelada desde 2011, é de R$ 11,62 por 10 m3 (dez mil litros) de água tratada. Enquanto isso os mesmos 10m3 de água dessalinizada custa a preço de hoje, R$ 453,20, aproximadamente 358 % mais cara.
Acrescente-se ao alto custo operacional, o vultuoso investimento inicial na ordem de R$ 3,5 bilhões, o que sugere aos técnicos cearenses considerar a hipótese de ir buscar água doce no delta do Rio Parnaíba.
A distância aproximada pela costa do atlântico é de 400 Km; as vazões do Rio medidas em Teresina indicam: média das máximas de 2.430m3/s; média das médias de 587m3/s e média das mínimas de 300m3/s.
Será que essa hipótese foi levada em conta quando da definição de um outro manancial para atendimento da área metropolitana de Fortaleza?
Encerramos esse artigo ressaltando a importância e atualidade do tema que tem interligação climática com a grande cheia do Rio Grande do Sul, que intercomunica com a agonia do Rio São Francisco, com a perda de vazão galopante do Rio Colorado nos USAN, ou a queda de vazão do Rio Pó na Itália e o reflexo nos canais de Veneza.
Aqui mais perto de nós a agonia dos rios da Amazônia, coisa nunca vista.
O Rio São Francisco agonizante e mal tratado pelo mesmo homem que dele precisa, inclusive da sua água para beber.
Tudo faz parte das mudanças climáticas e tem comunicação com a sustentabilidade. O bicho humano continua indiferente a tudo isso.
Referências:
A distribuição da água no mundo. A água na superfície terrestre (uol.com.br);151013_relatorio_analise_fortaleza2.pdf (ipea.gov.br); (1)
Entenda como funciona a usina que tira sal da água do mar e gera embate por risco de derrubar a internet no Brasil | Ceará | G1 (globo.com); (2)
ONU alerta contra impactos ambientais da dessalinização para fornecimento de água doce (tratamentodeagua.com.br); (3)
G1 – Custo e estratégia são desafios para dessalinização em SP, diz especialista – notícias em São Paulo (globo.com); (4)
A GRANDE SECA DO RIO COLORADO | ÁGUA, VIDA & CIA – Fernando José de Sousa
Fotografias:
A distribuição da água no mundo. A água na superfície terrestre (uol.com.br);
151013_relatorio_analise_fortaleza2.pdf (ipea.gov.br);
Entenda como funciona a usina que tira sal da água do mar e gera embate por risco de derrubar a internet no Brasil | Ceará | G1 (globo.com);
Os custos da dessalinização da água – EOS ConsultoresEOS Consultores;
A GRANDE SECA DO RIO COLORADO | ÁGUA, VIDA & CIA – Fernando José de Sousa;
Rio São Francisco: 23 milhões de rejeitos são despejados por ano – Cultura e Realidade – Notícias da Região de Irecê e Chapada Diamantina;