Por: Neves Couras;
Esta semana por um problema ocorrido na rede elétrica onde moro, passamos quatro dias sem energia elétrica. Este fato nos levou a utilização de velas desde o cair da tarde, até a hora que o cansaço e o calor nos punham a dormir.
Deitada em minha rede, artefato que não devo utilizar em função das questões da coluna, que não são apenas pela idade, mas acima de tudo pela genética, foi a única forma de conseguir um pouco de ventilação, para aliviar minha pele já tão delicada pelo Lúpus e pelo Líquen. Para tentar conciliar o sono, comecei a olhar ao entorno do meu quarto, e nesta viagem, vieram as lembranças de um passado que me percebi feliz.
Nunca tinha parado para pensar que uma simples sombra na parede causada pela luz de uma vela, pudesse acessar tantas lembranças e ao mesmo tempo, perceber tantas mudanças de vida que a modernidade nos trouxe, que além do conforto, nos deu um pouco de comodismo. Mas quem não gosta de viver bem?
Aquela sombra me fez voltar ao tempo, exatamente na casa de meus avós paternos, onde passávamos muito tempo. Para quem não conhece um pouco da realidade das casas sertanejas daquela época, vou tentar descrevê-las um pouco. Apesar das casas enormes, e das famílias terem grande número de filhos, seria de supor, que houvesse nas casas quartos para acomodar todos os filhos, e, quem sabe, posteriormente os netos. Mas não era assim.
Pelo menos nos sítios e, para algumas famílias. Seria injusto de minha parte generalizar. O certo é que os filhos iam nascendo e a quantidade de redes iam se espalhando nas salas que eram em número maior que a de quartos. Estes, normalmente eram para os casais, e às vezes, para as mulheres enquanto estavam de resguardo.
Obedecendo esse raciocínio, cada filho tinha sua rede e seu lugar determinado. Na casa de meus avós, a de meu pai ficava logo a direita da porta de entrada. Diga-se de passagem, lugar privilegiado para observar uma grande serra que fica em frente a casa imagino quantos segredos e quantas lembranças estão lá depositadas.
Aproveitávamos as lamparinas, para brincarmos criando imagens, utilizando às mãos, era um grande divertimento, principalmente quando alguém conseguia criar a imagem de algum animal cheio de chifre e língua horrenda. Quantas gargalhadas, proporcionada pela inocência e falta de preocupação.
Com essas lembranças, também consegui fazer algumas comparações da vida de criança nos dias atuais, assim como a simplicidade da vida no campo. Como crianças, ao anoitecer, era comum nos deitarmos na imensa calçada que também era utilizada para secar o feijão para ser guardado para toda entre safra, assim como para nos espalharmos naquele chão frio, a olhar para a lua quando era seu dia de aparecer, mas com certeza as estrelas não saiam de lá. Muitas vezes, fazíamos campeonatos para ver quem conseguia contar mais e as mais “vivas”. Às vezes ficamos a escutar as histórias dos mais velhos, que aproveitavam para trazer comentários da vida dos compadres, dos casamentos, dos que adoeciam, dos que estavam namorando e assim, sabíamos das noticias que vez por outra também eram informadas a previsão de chuva, de bons e maus invernos.
Todo aquele cenário, revendo hoje em nossa memória, parece que tudo era mais fácil. É evidente que como crianças só ouvíamos tudo aquilo sem nenhum direito a voz ou voto, nem tão pouco tínhamos direito a um cafezinho que era servido não só para os moradores da casa, mas aos visitantes que tinham hora marcada para sair e chegar, embora ninguém tivesse um relógio.
No inverno, o cuidado era para os sapos não subirem a calçada assim como as caranguejeiras que de vez em quando davam o “ar de sua graça”. Ao amanhecer do dia, a primeira tarefa era pegar um copo de alumínio com um pouco de açúcar para tomarmos um leitinho quente direto do peito da vaca. Era tanto sabor, que todos ganhávamos até um bigode branco da espuma do leite. Ninguém sofria de intolerância a lactose, nem tão pouco aquele leite por não ser pasteurizado nos causava alguma doença.
Crescemos fortes e espertos para as brincadeiras, para voltarmos à escola, que só exigia de nós, respeito para com o professor, educação que já trazíamos de casa, decorar as lições e fazermos as tarefas, e, nos prepararmos para sabatina. Para quem não sabe, o dia de respondermos a tabuada toda de cor. Errar nos pontos, ou seja, se não soubéssemos repetir o texto de história, geografia e não tivéssemos uma boa caligrafia, era castigo na escola e dobrado ao chegar em casa.
Não tínhamos celulares, televisores, tablets, e nem conhecíamos o “bullying”. Acho que este último veio com a modernidade. Talvez por sermos menos sensíveis, ou existia mais respeito uns com os outros, ou quem sabe ainda, as rixas eram resolvidas entre os envolvidos, sem ter que levar o problema à diretoria da escola ou fossemos parar num psicólogo, que nem sei dizer se conheci algum ainda jovem, ou talvez não víssemos as sequelas que as malcriações de outrora deixaram em nós.
Quanto aos adultos, acredito que as amizades eram mais sinceras, entre os homens, não se exigia muita papelada, até porque a palavra dada tinha força da Lei. Hoje, nem os direitos adquiridos por leis são respeitados, parece que ser honesto, passa pela interpretação de ser “besta”. Tirar a vantagem dos outros, parece fazer mais sucesso, tomar as coisas no peito e na raça, tem mais valor nos dias atuais.
Não estou dizendo que tudo na atualidade é ruim. Não seria insensível a esse ponto, mas parece que algumas coisas da modernidade fizeram com que os homens se tornassem menos humanos.
Mas não se enganem, ainda temos bons amigos, amigos de verdade. São poucos, mas existem. Quando estava ainda na noite escura sem energia elétrica, lembrando que preferi deixar um certo cargo, porque a pessoa que me convidou para ser sua assessora pertencia a um certo partido que eu também admirava, mas quando a política se aproximou e ele mudou de partido, eu preferi pedir demissão a participar de um trabalho só pelo dinheiro.
Eu não seria honesta comigo e nem tão pouco com ele. Sei que ele não compreendeu minha posição. Mas precisamos ser coerentes em tudo que fazemos, ou perdemos a direção do que somos ou do que queremos.
Sei que nossa temporada sem energia não foi muito confortável, mas do ponto de vista de minhas recordações, me trouxeram muitas saudades. Além de meus avós, de meus pais e tios, da convivência com tantos primos e primas e acima de tudo da vida simples e sem dúvida mais cheia de valores. Valores estes, que vejo diariamente serem relegados em favor da hipocrisia e da falta de ética.
A articulista Neves Couras mexeu hoje com o meu baú telúrico e acendeu lembranças apagadas com a chama da sua lamparina.
Na sua capacidade de elaborar e mover as palavras ela simplesmente excedeu.
Parabéns Neves!