Na noite do dia 28 de dezembro de 1943, estreava no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro “Vestido de Noiva”, peça escrita pelo jornalista e teatrólogo pernambucano Nelson Rodrigues. “Vestido de Noiva” se constituiu em um marco na modernização do teatro brasileiro. Três fatores contribuíram para o enorme êxito da peça: o revolucionário texto de Nelson Rodrigues, a inovadora direção de Ziembinski – um jovem polonês que havia chegado dois anos antes ao Brasil fugindo da guerra – e o suporte de uma criativa cenografia que contemplava os três níveis da ação, a alucinação, a memória e a realidade. Para o crítico Álvaro Lins, o cenógrafo do espetáculo “desenhando os cenários e construindo a arquitetura cênica – com bom gosto e uma penetração psicológica à altura da peça” poderia ser considerado uma espécie de coautor de “Vestido de Noiva”.
Em 1933, os romances “Cacau”, de Jorge Amado, e “Doidinho”, de José Lins do Rêgo, que foram publicados pela Editora Ariel, e “Caetés”, de Graciliano Ramos, publicado pela Editora Schmidt, apareceram com inovações gráficas não muito comuns na época e que eram apresentadas, principalmente, nas capas dos livros.
A partir do ano seguinte, alguns livros publicados pela Livraria José Olympio Editora, que se tornariam clássicos da literatura brasileira, também passaram a apresentar o mesmo apuro gráfico nas capas e ilustrações: “Macunaíma”, de Mario de Andrade, “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida, “A rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade, “Sagarana”, de Guimarães Rosa, “São Bernardo” e “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Banguê”, “Usina”, “Pedra Bonita” e “Menino de Engenho”, de José Lins do Rêgo. Para o autor de “Moleque Ricardo”, “o mestre dos desenhos das capas passou a ser o maior intérprete dos meus livros” e as suas vinhetas “resumiam a vida inteira dos meus romances”.
Mas, qual seria a vinculação da revolucionária cenografia da peça ‘Vestido de Noiva’ com as capas dos livros citados e que foram publicados nas décadas de 1930 e 1940? A resposta é simples. A cenografia da peça e as capas e ilustrações dos livros foram da lavra de um mesmo artista, que tinha múltiplas facetas: o paraibano Tomás Santa Rosa Junior.
Tomás Santa Rosa nasceu, em setembro de 1909, no número 320 da Rua da Areia, na capital da Paraíba. Talento precoce para o desenho, aos quatros anos o menino que a família chamava de Bozinho já fazia pequenas gravuras. Quando tinha nove anos, o Presidente do Estado Camilo de Holanda, impressionado com a sua aptidão para a pintura, propôs a sua família custear os seus estudos na Europa, sugestão que não foi aceita por sua mãe. Tomás Santa Rosa permaneceu na Paraíba e, paralelamente a sua vida escolar, continuou se dedicando à pintura e, conforme as suas próprias palavras: “Na escola não era aplicado em matemática, mas em geometria tirava sempre boas notas. Foi com base de geometria que fiz os primeiros rabiscos na tela”.
Aos catorze anos, por indicação do professor Álvaro de Carvalho, Santa Rosa começou a trabalhar em um escritório de contabilidade ligado ao governo estadual e, cinco anos depois, já era o chefe do órgão. Com a experiência adquirida, foi aprovado, em 1931, em concurso para contabilista do Banco do Brasil. Trabalhou inicialmente em Salvador – chegando a publicar, na Bahia, um livro sobre Contabilidade Bancária – e depois foi transferido para Maceió, onde se integrou ao meio intelectual da cidade. Mas, estava insatisfeito com o trabalho e queria se dedicar à pintura. Em carta para sua mãe escreveu: “Estou com a cabeça cheia de números, essa vida não é para mim”.
Santa Rosa resolveu abandonar o emprego no Banco do Brasil e se mudar para o Rio de Janeiro para viver da sua arte. Dividia com o escritor José Lins do Rêgo (que conhecera em Maceió) um pequeno apartamento e se tornou grande amigo e colaborador do pintor Cândido Portinari. Começou a publicar as suas primeiras ilustrações em revistas e jornais e iniciou os seus trabalhos como diagramador, ilustrador e capista de livros. Laurence Hallewell, autor de “O livro no Brasil, sua história” (Edusp, 1985), escreveu sobre Santa Rosa:
“Embora ele provavelmente vá ser lembrado sobretudo por sua obra teatral, tem sido considerado o maior produtor gráfico de livros do Brasil, responsável, quase sozinho, pela transformação estética do livro brasileiro nos anos 30 e 40. Sua influência foi tríplice. Em primeiro lugar, houve sua contribuição como ilustrador e produtor gráfico para editoras comerciais […] A seguir, veio a verdadeira revolução que realizou no aspecto físico das publicações do governo federal […] Finalmente, houve sua influência como professor”.
No Rio de Janeiro, onde se fixou definitivamente e se tornou uma das principais figuras do meio intelectual da cidade, Santa Rosa foi incorporando novas facetas às suas atividades artísticas. Para José Lins do Rêgo, Santa Rosa era “um misto de boêmio e vigoroso artista. Criatura de excepcional bom-gosto e admiravelmente dotado para tudo: pintura, desenho, cenografia, artes gráficas, música, teatro. Sabia inglês e francês (nessa época já lia com facilidade os clássicos franceses) e seu autodidatismo o levou a saber muito mais do que catedráticos”
A imensa criatividade de Santa Rosa o levava a sugerir a colegas de jornal a adoção de novos personagens, como foi o caso do popularíssimo Stanislaw Ponte Preta, conforme relato do seu próprio criador, o jornalista Sérgio Porto:
“Santa Rosa foi um dos inventores do personagem Stanislaw Ponte Preta. Foi ele que o imaginou […] na redação do Diário Carioca. Chamou-me a um canto e disse: – Sérgio, vamos criar um personagem novo, um tipo cabotino, para comentar notícias sofisticadas, uma mistura de crítica teatral e café society. Santa raramente demonstrava o seu entusiasmo pelas coisas. Parecia-me, no entanto, apaixonado pela ideia, ao ponto de tornar-se o primeiro ilustrador do Stanislaw. De manhã, na redação, pedia a matéria – ele mesmo escrevia alguns tópicos – e depois ilustrava os meus”
Santa Rosa, não apenas manejava com destreza os pinceis, mas, também, as palavras. Em 1939, foi premiado com a primeira colocação, com o livro “O Circo”, em um concurso de obras infantis promovido pelo Ministério da Educação. Escreveu inúmeros artigos de crítica de arte no “Diário de Notícias”, sucedendo ao pintor Di Cavalcanti, no “Correio da Manhã” e nos Cadernos de Cultura editados pela Imprensa Nacional, textos que foram reunidos no livro “Roteiro de Arte”. Para Portinari, Santa Rosa “como crítico, destacou-se pela maturidade e segurança de seus juízos mantendo-se à altura de um homem empenhado, honradamente, em servir à arte e à nossa cultura”.
A importância da contribuição de Tomás Santa Rosa para a cultura brasileira do seu tempo pode ser avaliada por um artigo do escritor Otto Maria Carpeaux. Nele, Carpeaux imaginava arqueólogos, no ano 9000 da nossa era, escavando ruínas no Rio de Janeiro e encontrando folhas de papel deterioradas. As folhas eram classificadas e ordenadas e identificadas como páginas de livros “escritos evidentemente por autores diferentes”, como Raquel de Queiroz, Gilberto Freyre, Carlos Drummond de Andrade, Ledo Ivo, José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo, Jorge de Lima, Marques Rebêlo, Graciliano Ramos e tantos outros. Mas, todas as capas dos livros exibiam um hieróglifo misterioso “SR”. E Carpeaux finalizava:
“Na verdade, ‘SR’ não teria sido o autor da literatura brasileira toda, mas, em determinada época, o condensador do seu espírito, a sua arte é como o denominador comum das aspirações artísticas da sua geração […] ‘SR’ é um símbolo do Brasil […] o nome todo que todos nós conhecemos: Santa Rosa”.
Em novembro de 1956, Santa Rosa se encontrava na Índia, representando o Brasil em uma Conferência Internacional de Teatro na companhia do também paraibano Simeão Leal. Em Nova Delhi, sofreu uma embolia e faleceu. Tinha 47 anos. Carlos Drummond de Andrade publicou, em 2 de dezembro, no “Correio da Manhã” o poema “A um morto na Índia”:
Meu caro Santa Rosa, que cenário
diferente de quantos compuseste
a teu fim resolveu a sorte vária,
unindo Paraíba e Indias de leste!
………
Em movimento rápido se fecha
Na rosa de teu nome, claro véu,
Ó Tomás Santa Rosa… E em Nova Delhi,
O convite de Deus: pintar o céu.