Um dia apoderou-se de mim um desejo de escrever: – – Escrevi –
Uma mulher negra, brilhantemente talentosa na arte de escrever trouxe com muita maestria para o centro da discursão, a vida, a discriminação e a difícil condição humana de ser pobre. A dificuldade de uma menina que ainda bem criança era empregada doméstica, a mulher catadora de lixo na grande São Paulo, e a mãe que sonhava presentear sua filha com um par de sapatos novos no dia do seu aniversário, fez de Carolina Maria de Jesus a primeira escritora negra do Brasil a traduzir seus livros para mais de 20 países.

A Vontade de conhecer de uma menina fez com que sua patroa a matriculasse numa escola, depois a sutileza e sensibilidade de uma mulher negra, pobre e favelada a levou a escrever e publicar seu primeiro livro:
Quarto de Despejo – 1960, onde ela requisita para sua escrita, personagens pobres, negros e periféricos, trazendo para cena principal não mais a sala de estar, a mesa de jantar e as varandas das casas grandes dos habituais temas literários da época, mas, o cotidiano dos catadores de lixo que dividiam com ela o ofício, e, foi na caminhada, na errância e na rua que Carolina passou a analisar e compreender a micro vida que ela levava e impactava na microeconomia da comunidade pobre que não podia ter nenhum desejo de consumo mais imediato, pois, tudo era imediato na sua vida, de viver sempre a margem, viver de restos e de sobras. Como ela explícita na sua conversa com um catador de papel:]
Conversei com um catador de papel. – Porque é que não guarda o dinheiro que ganha? Ele olhou-me com seu olha de tristeza: – A senhora me faz rir! Já foi o tempo que a gente podia guardar dinheiro. Eu sou um infeliz. Com a vida que levo não posso ter aspiração. Não posso ter um lar, porque um lar inicia com dois, depois vai multiplicando. Ele olhou-me e disse: – Porque falamos disso? O nosso mundo é a margem. (Quarto de Despejo, 1960).

Nascida em 1914, ela acompanhou todo o processo de urbanização e modernização da cidade de São Paulo, como também, toda a transformação política pela qual o Brasil passou até 1977, época da sua morte. Carolina classifica São Paulo a partir de metáforas urbanísticas, deixando clara a divisão racializada e classista de acesso aos espaços urbanos, definindo a cidade como uma casa: “O Palácio é a sala de visita, a Prefeitura a sala de jantar e a cidade é o jardim. A favela é o quintal onde jogam o lixo.” Em 1948, Carolina assiste e vive a demolição das casas térreas para construção de edifícios e a Favela do Canindé onde ela morava foi despejada para a construção do Parque do Ibirapuera nas comemorações dos 400 anos da cidade de São Paulo. A capital estava tomando um novo rumo para o desenvolvimento, à paisagem industrial de São Paulo era impressionante, a construção civil estava a todo vapor. A cidade que Carolina e tantos outros habitantes conheciam estava sendo demolida, e, em muito pouco tempo substituída por novas construções, pela arquitetura moderna do cimento armado, do ferro e do vidro. São Paulo crescia tão rapidamente, a ponto de apagar o ambiente de toda uma geração. Como afirma Canevacci (1997, p. 71): “As ruas de São Paulo não envelhecem. Não têm tempo de envelhecer. Aqui as casas vivem menos do que os homens.”.

A experiência da própria vida, do cotidiano, aspecto singular e pequenas vivências leva a reflexão macro de toda uma coletividade, mostrando outra cidade de São Paulo, São Paulo vista da favela, sem o mínimo de infraestrutura, como se a natureza externa refletisse no interior dos barracos. É uma cidade que se rompe dentro daquela que foi planejada, por ter sido empurrada para fora, para a margem, é o lado sujo e esquecido da cidade. Carolina mostra não só outra cidade de São Paulo, mas, outro Brasil, o Brasil vivido de outro centro, aonde a margem é o centro, o Brasil daqueles que vivem a margem. Sua vida simples, de necessidades simples, como sustentar a filha, comprar pão e um par de sapatos, tudo isso, como condição de vida, ela reclama do alto custo de vida e da realidade vivida por aqueles que passam fome, fala da miséria dos pobres e da favela. A sua escrita acaba incomodando a classe literária que a discrimina, a deprecia, e, por fim a exclui.

Entre 1960 e 1963, Carolina lança quatro livros, Quarto de Despejo, Casa de Alvenaria, Pedaços da Fome e Provérbios. Foi nesse curto período de três anos que ela teve sua fama, seu apogeu e seu declínio. Caindo no esquecimento de uma estrutura racista, lisógena e classista que explora, suga o que a autora tinha de melhor, e depois, lança fora. Hábito da elite literária que a ver como incomodo, como empecilho. Trazer para o centro a periferia, a pobreza e a desigualdade social era um paradoxo as ideias progressistas e modernas que marcaram os ramos da urbanização, educação e imprensa no governo Vargas e Juscelino Kubitchek. Ideologia elaborada e difundida pelos intelectuais da época.
A curta trajetória literária de Carolina inaugura a presença da escrita negra e feminina no Brasil, o questionamento sobre o direito a literatura que na época era reservado a um pequeno clube masculino, branco, de meia idade e herdeiros; clube que foi questionado pela presença de Carolina Maria de Jesus, tanto, no conteúdo como na forma, mostrando através da sua escrita outra cidade de São Paulo, uma cidade por trás das grandes avenidas, subdesenvolvida, desumana e pobre das favelas. Seus livros era um contraponto aos escritores da década de 1950 e 60 que via um país em desenvolvimento, em progressão, principalmente, São Paulo.
Um dia questionada sobre seu jeito simples de se vestir, porque, na opinião da maioria uma escritora tem que se vestir bem. Ela responde: Escreve quem quer, mas, em minha opinião: Carolina escreveu porque sabia.
A ARTE É A NOSSA ARMA.