Por:Antonio Henrique Couras;
A manipulação de marionetes é uma das formas mais antigas de teatro, com origens em várias culturas ao redor do mundo. Desde a Antiguidade, bonecos foram usados para contar histórias e transmitir valores culturais, espirituais e sociais, evoluindo ao longo dos séculos com características distintas em cada região.
Na Antiguidade, há registros de marionetes em civilizações como Egito, Índia, China e Grécia. No Egito, bonecos articulados eram utilizados em rituais religiosos e cerimônias funerárias. Na Índia, o Kathputli, marionetes de corda, tornou-se uma tradição milenar para narrar histórias mitológicas. Na China, o teatro de sombras emergiu como uma forma única de retratar eventos espirituais e históricos. Na Grécia e Roma, as marionetes eram mencionadas por filósofos como Platão e Aristóteles, que as viam como metáforas para a condição humana e a ilusão.
Durante a Idade Média, as marionetes foram incorporadas a festivais religiosos e peças didáticas na Europa, sendo usadas para educar as massas sobre temas bíblicos. Simultaneamente, no Japão, surgiu o Bunraku, um refinado teatro de marionetes que combina movimentos detalhados com música e narração, operado por três manipuladores por boneco.
No Renascimento, o teatro de marionetes ganhou destaque como entretenimento popular na Europa. Marionetistas viajavam por vilas e cidades, apresentando histórias cômicas e épicas. No período barroco, a sofisticação da arte cresceu, com companhias italianas como Carlo Colla & Figli criando bonecos elaborados, com figurinos ricos e movimentos detalhados.
O século XIX viu as marionetes assumirem um papel político, abordando temas sociais em diversas partes do mundo. Já no século XX, artistas como Jim Henson revolucionaram a arte ao levar marionetes para a televisão, com os Muppets alcançando fama mundial. Ao mesmo tempo, o teatro de marionetes entrou no campo experimental com artistas como Basil Twist, que integraram bonecos em obras visuais contemporâneas.
No Brasil, a tradição das marionetes se expressa principalmente por meio do mamulengo, típico do Nordeste. O mamulengo, com seus enredos humorísticos e improvisados, aborda questões culturais e sociais, refletindo o cotidiano de forma lúdica e crítica.
A manipulação de marionetes apresenta diversas formas artísticas, como marionetes de fio, fantoches de mão, teatro de sombras e estilos mais técnicos, como o Bunraku. Cada variação reflete a cultura e o contexto histórico de onde surgiu, adaptando-se com criatividade às novas tecnologias e demandas culturais.
Além do entretenimento, as marionetes têm sido usadas como ferramenta de educação, crítica social e preservação cultural. Hoje, a profissão de marionetista continua a criar mundos imaginários que dialogam com a humanidade, perpetuando uma arte que é ao mesmo tempo antiga e surpreendentemente atual.
Toda essa introdução para mostrar ao leitor que algo que temos como banal em nossas vidas como um simples teatro de fantoches, tem profundas raízes e, como incontáveis outras formas de arte, segue sendo tão antiga quanto é atemporal. Prova disso foi um relato que vi por esses dias na BBC sobre um desses artistas de marionetes, um Titiriteiro, que, em Gaza, leva alguns sorrisos a crianças imersas em uma realidade de guerra e morte.
Mahdy Krira dedicou mais de 15 anos ao que ele chama de “a maravilhosa arte” das marionetes. Ele fundou o Khayyout, que significa “fios”. É o primeiro teatro de marionetes de Gaza. Mahdy leva seu teatro itinerante para campos de deslocamento espalhados por Gaza. Ele e sua família também foram deslocados várias vezes ao longo da longa história de conflitos na região. Além de entretenimento, Mahdy usa suas habilidades para educar e oferecer uma forma de suporte psicológico.
“Quando a marionete aparece, os murmúrios e os sorrisos começam, e todos nós abraçamos o céu com alegria… Plantamos sorrisos, curamos nossas almas e, então, construiremos esta nação”, diz Mahdy.
Fiquei fascinado, como não poderia deixar de ser, por essa emergência (tanto no sentido de emergir-se como no de algo urgente) artística aparentemente tão simples, mas que é, não tenho dúvidas, a tábua de salvação tanto do artista como das crianças e adultos que vivem o inferno da guerra.
Há muitos anos venho estudando as misérias humanas, sejam nas guerras ou no nosso cotidiano de um país violento e empobrecido. Nesses estudos uma coisa que me fascina muito além da mórbida capacidade do ser humano de destruir seu semelhante, a capacidade que nós temos de, como flores após um incêndio, florescermos na adversidade.
Nossa humanidade, mais forte, surge na comida que sobrevive ao degredo, na música que canta nossas dores e saudades. A arte existe, como disse Ferreira Goulart, porque a vida não basta.
Nossa humanidade sobrevive em sementes de dendê contrabandeadas para o Brasil nas mãos de quem estava sendo escravizado, são músicas que surgem para cantar a dor e a saudade de casa. São pessoas, que depois da tortura são capazes de criar a beleza. É um artista que em meio à guerra resolve dar um pouco de alento às crianças ao seu redor. São pessoas que em meio à guerra entre o Estado, o tráfico e as milícias não tem nada a fazer a não ser resistir e a cantar a sua vida.
Ao seu modo, vejo Mahdy Krira com suas marionetes contando as dores de seu povo, como Luiz Gonzaga outrora o fez cantando a saudade do emigrante da seca, como também o faz MV Bill que canta a realidade nas favelas e a constante guerra em que se vive nesse nosso país tropical.
O Titiriteiro com seus bonecos e sua plateia assustada e faminta conta não só suas histórias, mas a história da humanidade e sua capacidade de se destruir e de resistir a si mesma através da sua inescapável necessidade de produzir e consumir a arte.